Desvios precoces

13:24 Kamila Siqueira 0 Comments

 12/11/2018

Foto: Bing Wright



     Eu sempre soube que esta estrada de chão um dia se apagaria. E eu costumava ter certeza de como isso aconteceria, sabia exatamente o que levaria as pessoas a deixarem de usar esse caminho e quais pegadas seriam as últimas a aparecer pela trilha. Mas eu não poderia estar mais enganada.
     
    O abandono veio de onde menos esperávamos. E veio cedo, tão cedo. O fio de vida que serviria como referência para a morte de todo o resto ainda nem se rompeu. Por que estão extinguindo a existência antes que a vida termine? A solidão da morte é natural e vem com o tempo. A solidão em vida é isolamento inútil, criado apenas para o sofrimento alheio.
     
     Não digo que essa foi a intenção, pois quero acreditar que a dor causada não foi proposital. Mas quero que ela seja pensada. Quero que seja algo a se refletir. Há quanto tempo ouço essas mesmas bocas falarem de amor, essas que agora proferem palavras que rasgam meu coração? Sinto-me confusa. Eu aprendi que o amor era algo a ser cultivado, ainda que em tempos difíceis. Aprendi que deveríamos nos esforçar para que nada nos afastasse, para que a força desse elo que existe desde antes de nós, nunca se enfraquecesse. Aprendi que a união era essencial para superar as dificuldades, para criar forças, para amenizar o sofrimento. Aprendi que, juntos, poderíamos subir mais degraus. E que esses avanços não nos afastariam, mas nos manteriam cada vez mais unidos, chamando outros para integrarem um grupo cada vez maior. Um grupo que possuía como base de construção, o amor.
     
     Mais de vinte anos ouvindo tais bocas falarem de amor e agora me deparo com o egoísmo imposto como certo. Será que a voz da calmaria se esqueceu de ouvir sobre o perdão? Será que tantas vozes podem ter se esquecido ao mesmo tempo? Será que sou a única que ainda acredita naquilo que todos nós pregávamos?
    
     Eu tenho cada vez menos motivos para seguir. Todos os dias penso nisso. Todos os dias, listo as razões. Todos os dias, a lista fica menor. Todos os dias eu penso sobre como as coisas eram, como as coisas estão e como minha luta para manter tudo o que eu aprendi é inútil. Todos os dias, eu penso em desistir. Todos os dias, todos os dias. 
     
    Será que em algum desses dias, vocês pensaram sobre o que estão fazendo? Será que sabem o que estão causando? Será que esse pensamento está presente durante as suas orações?
     
     Vocês deixaram.
     
     Vocês soltaram nossas mãos.
   


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A gente não dá conta da vida

17:32 Kamila Siqueira 0 Comments

16/02/2018   

Foto: Laura Zalanga


   A gente não dá conta da vida.
   A gente nasce, cresce, tem obrigações impostas e morre de amargura.
   Diploma na mão, carteira assinada, dinheiro no extrato, certidão de casamento, filhos (não muitos, nem poucos), declarar imposto de renda, pagar plano de saúde, ser feliz no amor, no trabalho, no círculo de amizades, na família. 
   Ninguém dá conta.

   Você precisa encontrar um trabalho que você goste, mas que pague bem. Trabalhe durante 44 horas por semana, mas encontre tempo para fazer atividades físicas, para cozinhar refeições equilibradas, para cuidar dos filhos, para passar um tempo com os amigos, para namorar. E não pare nunca de estudar. Quem para de estudar, fica para trás no mercado. 
   Tenha uma boa saúde mental e física. Lute contra seu próprio envelhecimento, hoje em dia já podemos encontrar cremes anti-idade indicados para os 25 anos, aproveite. Ao sinal dos primeiros fios de cabelos brancos, corra para o salão. E lembre-se de manter o corpo em dia: os cupons de desconto em clínicas de estética estão aí para isso, aliados àquela dietinha do verão. Mas isso é bom para você, você precisa cuidar de si mesma. Precisa gostar de si mesma. Precisa gostar de acordar às 5h da manhã todos os dias para fazer uma caminhada, precisa gostar de ir trabalhar depois disso, precisa gostar das conversas sobre isso, precisa gostar de suco verde. Suco verde.
   E olha, saia logo da casa de seus pais, vá morar sozinha. Mas não por muito tempo, você precisa se casar um dia. Não more de aluguel, isso é jogar dinheiro fora, tenha uma casa própria. Tenha um carro. Troque de carro depois de, no máximo, 5 anos. Carro velho dá despesas demais.
   E não se esqueça: você precisa ser alguém na vida.


   Mas então, o que a gente é quando nasce, se não somos alguém? Se precisamos passar a vida inteira buscando ser alguém na vida, o que somos então?
   Quando é que a gente se torna alguém de verdade? Quando conquistamos um diploma? Quando arrumamos um emprego com um alto salário? Quando temos filhos?
   Algum dia, em algum momento da história, alguém decidiu que tínhamos que entrar em uma busca incessante pelo sucesso. Mas por que precisamos ser o melhor em tudo? Por que precisamos estar no topo? Por que precisamos de alguém nos elogiando e reconhecendo nosso suposto valor?
   Ninguém dá conta disso tudo. Ninguém dá conta. Mas todo mundo continua cobrando dos outros que eles deem conta.

   Por que a gente ainda perpetua a felicidade inalcançável?



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