Bicho encanado

02:27 Kamila Siqueira 0 Comments

12/05/2023

Tem um monstro que mora dentro da minha barriga. 

Ele se mexe muito. Se arrasta, dá cambalhotas, morde, aperta. Às vezes sobe até lá em cima e depois mergulha até lá embaixo. Por vezes, ele é gelado. E é bastante insuportável. 

Esse monstro nasceu junto comigo, ou pelo menos, é a impressão que tenho. Não me lembro de viver sem ele. Ele estava comigo nas primeiras lembranças da escola, quando havia uma tarefa difícil de realizar e que todos pareciam achar extremamente fácil. Ele estava lá quando eu precisava me dirigir à professora e fazia com que minha voz saísse bem baixinha e trêmula. Ele estava lá até nas brincadeiras, principalmente naquelas de brincar cantando no ônibus de passeios.

Nós convivemos no mesmo corpo há mais de trinta anos. Eu sei que ele vai viver e morrer comigo e às vezes chego até a me conformar com isso, com sua presença. Mas outras vezes, é completamente sufocante tê-lo dentro de mim. Eu o sinto subindo pela garganta, se arrastando vagarosamente como uma cobra gorda, preechendo a traqueia, se enrolando ao peito, enchendo todo e qualquer espaço disponível. Eu não respiro. Eu não respiro, não respiro, não respiro e dá vontade de vomitar. Muitas vezes, eu vomito de verdade.

Profissionais já me ajudaram com isso. Sim, existem especialistas no bicho da barriga. Eles me ensinaram a conviver um pouquinho melhor com ele, me ensinaram a desviar a atenção dele quando preciso, a não permitir que ele me impeça de viver. Às vezes dá certo. Mas às vezes eu também sinto uma necessidade de deixá-lo vencer por uma noite e deixo-o preencher todo o espaço da garganta, enquanto eu choro até o outro dia. Choro, choro, choro tanto que me pergunto como ainda não consegui matá-lo afogado. Mas o bicho é forte, às vezes mais forte que eu. Enquanto ele sobrevive, eu morro de pouquinho em pouquinho. 

Hoje eu deixei ele vencer. Me deitei cedo e não dormi, fiquei sentindo sua pele áspera se arrastar dentro de mim até seu gosto amargo aparecer na boca. Deixei que ele me sufocasse. Não sei como será amanhã, não sei o quanto ele vai me apertar, não sei se vai me deixar viver o dia que preciso viver. Mas espero que sim. Espero que ele seja misericordioso comigo e que a gente consiga conviver um pouquinho melhor. Espero que um dia ele não tenha tanta raiva de mim. Espero que um dia eu não tenha tanta raiva de mim.


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