Quarta-feira de cinzas

09/07/2014


Eu andei por todas as ruas desta cidade antes que o dia fosse luz e a vida sugerisse uma estrada. Pelos becos que se escondiam de mim por medo da solidão da sombra que eu carregava, andei sem ter certeza se ela realmente pertencia a mim. Inaugurando esses caminhos que nunca haviam sido trilhados, encontrei os rastros deixados sem que eu tivesse a consciência de que tudo era pele descamada deixada para trás. Deixei a minha própria camada de pó, escondida nas entrelinhas, para que alguém a encontrasse um dia, ou não, não importa mais. Eu percorri pelos ladrilhos que separavam as duas calçadas sem tropeçar pelos cantos quebrados, sem perceber os cortes e as dores, sem a pretensão de ser vista deixando alguns cacos também. Eu andei com a calma de quem deixa a vida não vivida para mais tarde, sabendo, no fundo, que nada sairá do papel além do que já foi dito. Eu deixei reticências porque sempre as pretendo deixar, exceto quando o ponto final é intransponível. Eu não levei absolutamente nada comigo.

Mas por todas as ruas que passei, em todos os becos que parei, nas ruelas sem saída e nos caminhos percorridos, eu encontrei seus olhos castanhos por todos os cantos. Nem mesmo a minha pele descamada te deixava para trás e eu segui sem perceber que seus passos estavam deixando pegadas pela minha própria terra antes de mim. Eu não conheço suas estradas e nem pretendo, não vou trilhar esse caminho. Mas nós ficaremos encurralados em algum momento, e você não perceberá meus olhos castanhos por todos os cantos. E quando o tempo te engolir, você ainda será mais que um borrão, pois o tempo não te daria a condescendência de prosseguir sem pelo menos uma volta.

Embarque Internacional

23/06/2014


Eu não vou embarcar nos portões de 2 a 13 esta noite, mas você vai.
"Ainda não sei o que fazer em relação a nós dois, mas queria dizer que hoje senti falta."
Reler suas palavras bonitas de dois dias atrás não muda o fato de que a moça do aeroporto te chama para o embarque. E você vai.
E você foi.
Eu tento dizer que não vou ficar aqui de pijamas lembrando de quando você me chamava de sua garota, mas eu estou aqui sim.
Mas eu estou cansada.
Disso. De tudo isso.
Dessa parte de mim.
De mim mesma.


Ps.: me desculpe. Eu escrevi de novo sobre aquilo que eu não deveria escrever, mas eu realmente não me importo.

Eu não deveria escrever sobre isso.

23/04/2014


    Já faz algum tempo que não nos falamos. E mais tempo ainda que não nos vemos. Aos poucos te sinto mais distante, como sempre acontece, e não me refiro à distância física. Já faz muito tempo desde a última vez em que escrevi sobre você.
    Não por falta de ter o que dizer, isso eu tenho, e muito. Mas por pensar que não deveria falar sobre você. Pelo menos não publicamente. Por pensar que algumas pessoas não deveriam, não poderiam ou não gostariam de saber o que se passa aqui dentro. Me censurei durante muito tempo. Durante tempo demais. Não mais.
    Já faz quase dez anos, mas eu ainda me lembro das palavras exatas que você usou naquela tarde, depois de me beijar pela primeira vez. "A gente tem que tomar cuidado". Foi a primeira coisa que você sussurrou. A gente tem que tomar cuidado. Aquele foi o momento, aquele foi o exato momento, aquele foi o momento em que eu soube que você jamais seria meu.
    Idas e vindas, despedidas e reencontros, um início, um fim, vários fins, um pedido de desculpas, uma volta, um fim, uma pausa, não é o fim, nunca é o fim, nunca foi o fim. Outros amores, outras histórias, outros futuros planejados, outras vidas vividas, outros caminhos escolhidos, não vai acontecer de novo, eu sei, não vai, por mim poderia acontecer, por mim também, você faz falta, você também, eu te amo.
    Eu te amo.

"Eu não vou esquecer porque eu te amo."

    Você disse isso na última vez em que nos vimos. Pela primeira vez, você disse. E eu sabia que era verdade, apesar de tudo, apesar da vida, apesar dos outros caminhos, eu sabia que era verdade. Eu sei que é. Ainda é?
    Isso não muda os caminhos, eu sei, você tem um caminho e eu estou encontrando um caminho também. De novo. Eu não procurei, eu não queria, mas está surgindo um caminho. Você disse que existiam outros bons e é verdade. É verdade.
   Não é que eu não goste daquelas madrugadas sussurradas no escuro e dos sorrisos que a gente disfarçava. O coração que palpitava em segredo, tão alto e descontrolado. As mãos que suavam e tremiam mesmo depois de tanto tempo e aquela sensação de que minhas pernas estavam imitando gelatina, bambas, fracas, como se eu tivesse quinze anos de novo.

"Você é a história mais bonita que eu já tive".

    Mas é que a gente é sonho e eu procuro um caminho que possa ser realidade, sem censuras, sem desculpas, sem impedimentos, e acredito que você faz o mesmo. Eu queria que você fosse esse caminho. Sempre quis. Me deixe assumir que isso é o que eu sempre quis. Que sempre foi, durante todos esses anos. E assuma que não era bem o que você queria.
    A gente é sonho. Você sempre foi meu sonho. Meu sonho, meu amor, meu segredo, meu, meu tantas coisas e nunca meu. Nunca meu. E eu sempre fui sua, desde sempre sua, e nunca sua. Nunca sua. Nunca de verdade. Nunca.
    Hoje eu escrevi sobre você e talvez não devesse ter escrito. Mas era o que eu queria. Hoje eu não me importei. Hoje não tomei cuidado. Será que terei problemas?

"A gente tem que tomar cuidado".

    Será que teríamos tido problemas?

Eu transbordo

08/04/2014


Se te pedissem para dizer quem você é em sua essência, você saberia o que responder?
Alice me ensinou que pela manhã acordamos sendo alguém, mas mudamos muitas vezes desde então. Apesar de saber exatamente como é isso, eu saberia dizer quem sou. Sei o que me é intrínseco: eu transbordo.        
Eu sou alguém que transborda. Transbordo meus erros e meus acertos, minhas dádivas e meus pecados. Tudo em mim é exagero e vivo aos extremos. Nada é ruim o suficiente se  não puder se transformar em uma tragédia shakespeariana. Se for bom, que seja um espetáculo da Broadway. Eu transbordo todos os meus erros e sofro minha culpa ao extremo. "Não pegue toda a culpa para você. Aceite só a sua parte." Me sinto responsável por tudo. Mas também transbordo perdão na mesma proporção.
Mesmo que não percebam o erro. Mesmo que ela nunca me peça perdão. Eu o transbordo.  
Minhas lágrimas são maiores que meus olhos, transbordam para fora, escorrem pelo corpo nu em excesso. Minhas alegrias andam transbordando em sorrisos e gargalhadas de doer a barriga. Amo ouvir essa risada.
Minha vontade de estar presente na vida dos que aprecio também é desse tamanho enorme. Minha vontade de agradar, de ajudar, de ser importante para os outros. De ser alguém. Talvez minha carência também transborde de maneira patética.
Mas peço que perdoe esses extremos ruins, e peço perdão oferecendo o que tenho em maior quantidade entre meus exageros: o amor.
Eu transbordo amor. Por todos aqueles que também tem amor e por aqueles que não o possuem. Por quem também me tem amor e por quem não significo. Por quem me quer e por quem me rejeita, por quem quer meu amor inteiro e quem quer só um pedacinho, sem esse auê todo.

Eu transbordo amor.
É isso o que me salva.
É isso o que me destrói.


Máscara de carnaval

01/03/2014


Eu tenho uma febre que sei que vai passar, mas não passa.

Tenho uma angústia no peito que não sei se passará.

Tenho uma culpa nas costas que não sei de onde vem.

E tenho um medo de olhar nos meus próprios olhos diante do espelho. Não me encaro.

Não sou eu. Eu não sou eu. Alguém me tire de mim porque eu não sou quem sou, não fui tudo o que fui para me transformar nisso que sou, não sonho em ser quem sonho depois de ser quem sou hoje. Não pertenço a esta pele. Alguém me tire dessa pele, me tire desse corpo, esse corpo não pertence a mim, não é meu, não sou eu. Não quero que seja eu. Não quero ser eu. Alguém me dê uma máscara que cubra minha alma, que possa encobrir meus erros e minhas vergonhas, meus fracassos e minhas ingenuidades, minhas quedas em público, meu tropeços, meus enganos. Perdoem meus pecados e os esqueçam. Esqueçam quem sou e lembrem-se de quem fui. Eu não sou mais quem fui.
Quero gritar que isso é um engano, que não estão vendo a verdade, mas a verdade é a que está estampada mesmo, é a que a minha maquiagem não consegue cobrir. Minha alma rasga-se inteira tentando sair, tentando fugir, porque meu corpo não é um bom lugar para se estar perante esses olhares acusadores que dizem saber que a culpa é minha. Que não dizem nada e acusam com os olhos. Que me fazem abaixar a cabeça e não olhar diretamente, nunca, em hipótese alguma, nem para os meus próprios olhos no espelho. Eu não tenho coragem de olhá-los. Alguém me tire de mim porque aqui não é um bom lugar para eu estar. Alguém me roube e me sequestre, leve tudo o que tenho de mim e não devolva nada. Roube minha alma e a despedace, por favor.

Eu nunca senti que eu era uma boa pessoa.

Quando dançávamos

11/01/2014

(...) E você dançava tão bem! Quando o professor mandava trocar os casais, eu te observava dançando com as outras e não sentia ciúmes, sentia orgulho. Você ficava tão bonito pra lá e pra cá no salão, contando os três tempos do ritmo da música, fazendo tudo direitinho, tão homem, tão bonito. E eu dançava com os outros cavalheiros - porque era assim que o professor chamava todos os homens - mas eles não conduziam como você, eles não sabiam me levar como você, eles eram inseguros e desajeitados. Você era seguro, firme, me mantinha firme nos seus braços, me segurava na hora certa depois do giro, lembra quando o professor dizia que o cavalheiro tinha que saber quando pegar a dama depois do giro porque ela só deveria parar de girar depois que sentisse a mão direita dele em sua cintura? Agora eu estou girando e girando e girando pelo salão da vida e não sinto suas mãos me resgatando e me puxando para si de novo, não sinto você aqui, não vou conseguir parar de girar até sentir você, mas você não vai voltar. Você não vai me resgatar do giro. Quem vai me resgatar agora? Ninguém.

Potinho

12/12/2013

Se a felicidade fosse algo palpável, algo que eu pudesse segurar em minhas mãos, eu não a exibiria como um troféu, como tanta gente gosta de fazer.
Eu a guardaria em um potinho.
E o daria a você.

Se você tivesse um potinho de felicidade sempre com você, eu não precisaria de mais nada para ser feliz.

Sabe o que é isso?

14/09/2013

Sabe o que é isso?
É quando você começa a gostar dos domingos. Dos dias de sol. É a única coisa que te faz reunir um pouquinho de coragem para sair da cama quente em um dia frio e enfrentar o vento gelado lá fora. É dar as mãos porque não existe mais como caminhar sem dar as mãos. É sentir que o coração só acerta o compasso quando aquele calor está ali. É não saber o que dizer e, ao mesmo tempo, sentir-se à vontade para dizer qualquer coisa. É confiar ao ponto de não preocupar-se em ensaiar um diálogo antes de um telefonema e não ter vergonha de admitir que não entende algo. É não fingir.
E como poderia fingir? Não consigo nem mesmo manter-me sob meus habituais escudos. Eu perco meus escudos, minhas defesas. É isso que isso faz com a gente, é isso. É desarmar-se. A gente perde as armas que costumamos empunhar diante do mundo. E a gente faz por querer, a gente entrega as armas e se despe de qualquer coisa até que tudo o que reste seja as nossas almas nuas. E a gente faz isso sem medo, a gente salta por cima de um abismo e ainda sorri, sem ter consciência do quanto a queda seria dolorosa se algo desse errado. A gente não pensa que algo pode dar errado. Não, vai dar tudo certo. Tá dando tudo certo. E se a gente cair, a gente cai rindo e se levanta rindo, apoiando-se um no outro. E já está tudo bem de novo, daqui a pouco a gente já está dançando lá no alto de novo. É isso, é a certeza de que tudo é tão bonito e que se não está, será. É tão bonito que não cabe. Nem no peito, nem nas palavras.
Chame de amor, se quiser. É isso.


Inexorável

07/08/2013


A questão é que eu nunca te deixaria para trás e você jamais entenderia isso. Eu nunca te deixaria. E não é por escolha, é por uma espécie de necessidade inexorável. Mas não é uma necessidade minha de ter você, não é isso, não é egoísta assim. Eu posso viver sem você. Já não vivi antes? Não, essa necessidade é outra. É a necessidade pura e simples de não te abandonar.
Eu não sei porquê. Simplesmente sinto que preciso continuar, por mais difícil que isso possa ser. Por mais pedras que possam surgir, eu sei que encontrarei um trecho livre no caminho para passar. Por mais que eu ache que não esteja pronta para enfrentar, eu enfrentarei.
A sua opinião é diferente e isso não me deixa surpresa. Você acha que talvez eu deva ir um dia. É que você não enxerga tão longe quanto eu. É que você acha que só existe este presente e que ele é imutável, mas eu sei que logo mais o futuro vai se transformar em presente também e que as coisas mudam. Eu sei porque já estive mais na frente, onde você ainda vai chegar. Onde eu quero que você chegue.
Talvez eu esteja ao seu lado justamente por isso: porque sei onde você precisa chegar e temo que desvie do caminho se eu não estiver guiando. Mesmo que eu precise guiar de longe, sem que você tenha consciência. Mesmo assim.
De vez em quando dói e apenas nesses momentos eu questiono o que me leva a continuar. Não ouso usar a palavra amor. Sei que não é só por amor. É algo antes do amor, algo muito menos egoísta e muito mais instintivo e humano. Não sei o que é, não sei como chamar isso que me impulsiona para frente. O que sei é que é inevitável, então não questione, apenas aceite. Não vou largar da tua mão.

Levante-se.

07/07/2013


Será que faria alguma diferença se eu te dissesse que é normal sentir medo agora?
E se eu disser que entendo e que você não é o único que está com medo? Será que você me ouviria?
Respire. Acalme-se. Eu sei que tudo o que está acontecendo é pesado demais para ser processado. A gente acha que precisa de um tempo para parar e respirar. Respirar. Só isso. Mas às vezes parar e respirar pode ser pior. Porque, sem perceber, nós estendemos esse tempo ao infinito simplesmente porque não queremos enfrentar o futuro. Às vezes é melhor respirar fundo uma única vez, prender a respiração e mergulhar. Já pensou nisso? Não, nós evitamos pensar nisso. Não queremos nos mexer porque não sabemos o que está por vir e isso nos assusta. Mas o futuro é assustador mesmo. O mundo é assustador e parece muito mais seguro não sair debaixo das cobertas nunca mais na vida. Mas a gente não pode viver assim para sempre.
Eu sei que é difícil aceitar o que está por vir. Sei que parece muito mais sensato fugir e não olhar para frente nunca mais. Parar no tempo. Estagnar. Mas pense: o que seria do mundo se ninguém enfrentasse o medo do novo e estagnasse no presente? A gente ainda estaria vivendo em cavernas.
O que eu quero dizer é que, apesar de ser assustador, o que está por vir pode ser fantástico. Se você decidir se levantar e enfrentar, mesmo que seja aos pouquinhos, uma pequena batalha por vez, coisas maravilhosas podem acontecer com você. Sua vida pode virar de cabeça pra cima. Eu sei disso porque foi o que aconteceu comigo.
Acho que se eu te dissesse tudo isso, você responderia que tudo o que eu digo é uma grande bobagem. E talvez seja mesmo. Talvez eu só diga bobagens e não saiba de nada mesmo. Talvez eu esteja repetindo as mesmas palavras há anos e ninguém mais queira me escutar. Mas pode ser que eu esteja certa. E se uma pequena parte de você acreditar em mim, se uma fagulha do seu ser pensar seriamente em tudo o que eu disse, já valerá a pena eu ter arriscado falar. Porque eu tenho medo de te dizer tudo isso. Mas e se eu enfrentar o medo e algo maravilhoso acontecer?