Quarta-feira de cinzas

15:26 Kamila Siqueira 0 Comments

09/07/2014


Eu andei por todas as ruas desta cidade antes que o dia fosse luz e a vida sugerisse uma estrada. Pelos becos que se escondiam de mim por medo da solidão da sombra que eu carregava, andei sem ter certeza se ela realmente pertencia a mim. Inaugurando esses caminhos que nunca haviam sido trilhados, encontrei os rastros deixados sem que eu tivesse a consciência de que tudo era pele descamada deixada para trás. Deixei a minha própria camada de pó, escondida nas entrelinhas, para que alguém a encontrasse um dia, ou não, não importa mais. Eu percorri pelos ladrilhos que separavam as duas calçadas sem tropeçar pelos cantos quebrados, sem perceber os cortes e as dores, sem a pretensão de ser vista deixando alguns cacos também. Eu andei com a calma de quem deixa a vida não vivida para mais tarde, sabendo, no fundo, que nada sairá do papel além do que já foi dito. Eu deixei reticências porque sempre as pretendo deixar, exceto quando o ponto final é intransponível. Eu não levei absolutamente nada comigo.

Mas por todas as ruas que passei, em todos os becos que parei, nas ruelas sem saída e nos caminhos percorridos, eu encontrei seus olhos castanhos por todos os cantos. Nem mesmo a minha pele descamada te deixava para trás e eu segui sem perceber que seus passos estavam deixando pegadas pela minha própria terra antes de mim. Eu não conheço suas estradas e nem pretendo, não vou trilhar esse caminho. Mas nós ficaremos encurralados em algum momento, e você não perceberá meus olhos castanhos por todos os cantos. E quando o tempo te engolir, você ainda será mais que um borrão, pois o tempo não te daria a condescendência de prosseguir sem pelo menos uma volta.

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