A patrulha da fraude

10:51 Kamila Siqueira 0 Comments

     


30/03/2016
      Toc Toc.
     Eu encaro a porta com o cenho franzido e abro. Dois homens me encaram, um loiro, um moreno. Usam ternos. Perguntam se sou a fulana de tal e eu afirmo com a cabeça. Os dois entram sem convite. Quando passam por mim, consigo ler rapidamente um crachá: Patrulha da fraude.
     Sentam-se. Sento-me. O moreno abre uma pasta cheia de papéis e começa.
     - Nós sabemos de tudo. Estamos te observando desde o início então não tente nos enganar também. Você é uma impostora. Nós temos provas de que você não faz a menor ideia do que está fazendo com a sua vida e tudo o que conseguiu até hoje não vale nada porque você é uma farsa.
     Meu coração acelera. Fui descoberta.
     - Eu não sei do que estão falando.
     O loiro também fala.
     - Exatamente. Você não sabe de nada. - Ele estala os dedos - Vamos por partes. Você pretende arrumar um emprego de verdade um dia ou vai continuar fingindo que é uma profissional com esses empreguinhos que arranja desde que saiu da faculdade?
     - Eu... eu tenho um emprego - a afirmação soa quase como uma pergunta.
     - Em nossos arquivos consta que você nunca declarou imposto de renda.
     - Porque nunca recebi a quantia anual que me obrigaria a declarar.
     O moreno tira os óculos e massageia as têmporas.
     - Você acha que isso é salário de um adulto?
     Eu dou de ombros.
     - É a média que recebi em todos os empregos que já tive.
     - O que seu pai acha disso?
     Eu não respondo. O loiro respira fundo.
     - Nós sabemos também sobre seus sonhos profissionais - ele ri - se é que podemos chamar isso de profissão. Você realmente acha que um dia será uma escritora de verdade?
     - Eu sou uma escritora de verdade - afirmo.
     O moreno também ri.
     - Quantos livros você já publicou?
     Eu me encolho.
     - Eu nunca disse que era uma autora publicada...
     Eles anotam algo nos papéis, um ri e o outro debocha:
     - Desde os 17 anos com essa história e ainda não cresceu...
    - Ok, vamos mudar de assunto. - Suspiro aliviada. - Sua vida amorosa. Você está ciente de que suas amigas estão começando a se casar enquanto você não tem nem namorado?
     Eu rolo os olhos.
     - Eu estou bem com isso, obrigada.
     - Você tem ideia da quantidade de pessoas que estudaram com você no colégio e já tiveram filhos? E eles estão ótimos. Filhos dão um novo sentido à vida, fazem você se tornar um adulto de verdade, criar responsabilidades. Coisas que você não tem.
     Encolho-me de novo. Eles analisam documentos e fotos na pasta.
     - Nós sabemos que você sai com alguns caras de vez em quando. Até diz para os amigos que às vezes gostaria de namorar alguém. Mas somente nós sabemos que na verdade você possui a maturidade emocional de uma adolescente e não sabe construir relacionamentos adultos. Você não sabe fazê-los durar.
     O outro consulta alguns papéis.
     - Até quando você pretende usar os traumas dos dois ex-namorados agressores para legitimar sua solteirice?
     Trinco os dentes.
     - Eu não tenho trauma nenhum e não uso desculpa nenhuma.
     - Será que não? Nem para si mesma?
     Fecho os punhos.
     - Ok, ok, não queremos deixá-la desconfortável. Não há nada de errado em viver sozinha. Ser independente. Diga-nos, por que você ainda não mora sozinha mesmo?
     Fecho a cara.
     - Não ganho o suficiente para me sustentar.
     Eles sorriem.
     - Ah, claro. O emprego de novo. Você sabe que já está saindo da fase dos "vinte e poucos anos" e entrando nos "vinte e tantos", não é? Não acha que já está na hora de conseguir se sustentar como uma adulta?
     Não respondo. O moreno me encara, olho no olho, e eu sustento o olhar.
     - Você só finge ser adulta. Mas na verdade não consegue ser. Você é uma farsa. Tem idade mais do que o suficiente para ser uma pessoa de verdade, mas não consegue. Você é incapaz. Olha à sua volta, todos os seus amigos do facebook já moram sozinhos, dirigem seus carros, têm bons empregos, ganham bem, viajam, aproveitam a vida, namoram, casam-se. Olha pra você. O que você conseguiu até hoje? Como você tem coragem de andar por aí fingindo que é alguém de verdade? Você não é nada.
     Ele termina de falar e continuamos nos encarando, ambos com as mandíbulas apertadas. Minha respiração é pesada. O loiro intervém, entregando-me alguns papéis e uma caneta.
     - Acredito que isso é o bastante por hoje. Por favor, assine nos locais indicados e iremos embora.
     Dou uma lida rápida nos papéis sem entender muitas coisas, mas assino rápido para me livrar logo dos dois.
     - Essa é a sua assinatura? - Eles perguntam, rindo do meu nome escrito por extenso. - Parece piada.
     Encaminham-se para a porta. Antes de desaparecerem, o moreno torna a olhar-me com firmeza e diz:
     - Pode ter certeza que isso não vai ficar em segredo. Vamos contar para todo mundo sobre seus fingimentos. Você está perdida, garota.
     Eles vão embora e eu permaneço parada na porta. Por uma, duas, três horas. Não consigo me encarar no espelho. Eu estou perdida.
    Eu estou perdida.



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Caixas ineptas

16:59 Kamila Siqueira 0 Comments

01/03/2016




Eu enxergo as pessoas como seres que carregam caixas. É como se cada um de nós, ao nascer, ganhasse uma caixinha simples, vazia por dentro. Sete bilhões de caixinhas iguaizinhas. Ela não é um fardo porque nós não temos obrigação nenhuma quanto à caixa, não há nada que supostamente devemos fazer com ela. Entretanto, eis a beleza da coisa: não temos obrigações, mas possuímos a liberdade de fazer o que quisermos com ela.

Algumas pessoas enfeitam a caixa. Deixam-na o mais bonita que conseguem e sentem-se felizes ao admirá-la. Isso é bonito. Outros preferem não alterar sua aparência física e gostam da caixa em seu estado natural. Isso também é bonito.

A diferença existe quando abre-se a caixa.

A gente pode colocar o que quiser lá dentro. Coisas boas, coisas ruins, coisas que nos fazem rir, coisas que despertam sentimentos bons em quem abrir a caixa, coisas que ajudam outras pessoas. Coisas que destroem, coisas que apodrecem, coisas que inspiram, coisas que afagam. A caixa não tem fundo. Imagino até mesmo que quanto mais se adiciona à ela, mais espaço se cria para novos conteúdos. A caixa é mágica e ao mesmo tempo, completamente comum.

Por onde ando, procuro por caixas a serem abertas. Respeito quando não há aberturas, algumas pessoas preferem manter seus cadeados fechados por questões de (in)segurança. A gente precisa compreendê-las e respeitá-las. Outras, passam o dia a adornar sua caixa, polindo-a até que ofusque tudo ao seu redor e a carregam consigo por onde andam. Mostram-na com orgulho porque é um objeto bonito. Mas, ao abrir-se, a caixa não tem nada além de quatro pequenas paredes vazias. Brancas. Insípidas. Essas caixinhas me entristecem. Veja bem, todos nós temos a liberdade de colocar o que quisermos dentro da caixa. Por que tantas caixas ainda estão vazias?

De vez em quando, encontro uma cheia. Ainda mais raramente, uma que transborda. Caixas que transbordam me fascinam. E isso me faz pensar em minha própria. Eu já destranquei meus cadeados, mas penso que ainda há muito pouco aqui para ser uma caixa admirável. Tenho algumas frases escritas, uma montanha de palavras lidas, mãos que ofereço de graça e céus que não me esqueço de admirar. Às vezes ainda tenho um pouquinho de vergonha dela e sei que preciso melhorá-la. Por dentro. Ainda há tanto espaço a ser preenchido! Conto com a paciência e compreensão de quem abre a caixa: ela está em constante reforma interior e juro que ainda irá evoluir muito. O importante é não deixar que ela se torne um deserto estéril, uma caverna oca.

Tente não andar por aí como uma caixa oca.




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