Das lembranças

19:33 Kamila Siqueira 0 Comments

18/12/2015


     Um dia, você vai se esquecer.
    Vai se esquecer de todas as preocupações que carrega hoje nos ombros, vai se esquecer daquele erro que cometeu no trabalho e que quase causou sua demissão, vai se esquecer do almoço delicioso do fim de semana e daquela surpresa de aniversário inesquecível. Você vai se esquecer da noite que passou em claro estudando para aquela prova que mudaria sua vida e daquele dia em que não parou de trabalhar nem na hora do almoço porque havia muito o que fazer.
    Um dia você se esquecerá de todas as cobranças que o mundo lhe fez, todas as pressões que você teve de ceder, todas as derrotas que achou que fariam o seu mundo desabar. Esquecerá do som que a tempestade fazia durante a madrugada, da sensação de parar em frente ao mar e sentir a onda bater em seus pés, do calor do sol da manhã na janela do ônibus. O farfalhar das folhas, a sensação da água se espalhando quando você pulava em uma poça d'água, o fósforo que chegava ao fim e começava a quase queimar os dedos. Pouco a pouco, tudo vai se dissolvendo em um abismo líquido de memórias esquecidas, sem que você se dê conta.

    Apenas duas coisas serão lembradas para sempre:
    O amor.
    E o ódio.

    Você se lembrará daquele beijo. Daquela risada de criança. Do calor do abraço. De cinco dedos entrelaçados aos seus. Do coração batendo. 
    Lembrará do dia em que percebeu que gostaria de passar o resto da vida com uma determinada pessoa, do dia em que sentiu que aqueles amigos já eram parte de sua família, do dia em que uma pessoa amada se foi. Você se lembrará do som das gargalhadas, das tradições de natal, das histórias antes de dormir - narradas por você ou para você. Você se lembrará das pessoas. 
    E das brigas. Das palavras raivosas que saíram de sua boca. De todos que você amou e machucou, de todos que te machucaram e a quem você negou o perdão,  do orgulho que te impediu de pedir perdão. Do silêncio que fez quando deveria falar, do apoio que negou, do abandono que protagonizou. Lembrará dos machucados que provocou sem arrependimentos. Das cicatrizes que não curou quando pôde, do coração que não segurou quando lhe entregaram, do medo que o impediu de ser recíproco. Você se lembrará da dor que causou.
    Ódio.
    Amor.
    Do que você quer se lembrar?

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Rios de sangue, rios de lama

01:34 Kamila Siqueira 0 Comments

16/11/2015 



    Eles explodiram a cidade luz.
  Distribuíram balas pelas ruas, pelos bares, pelos restaurantes, pelo show de rock. Trancafiaram centenas de pessoas e fizeram-nas assistir à morte de amigos e esperar pelas suas próprias, deitadas sobre poças de sangue. Eles disseminaram o cheiro da morte.
  Derrubaram um avião russo. Não necessariamente nesta ordem. Mais de duzentas vidas foram ceifadas em meio segundo. O tempo de uma bomba explodir. O tempo de se perguntar o que está acontecendo e descobrir do jeito mais cruel possível. O tempo de uma pequena oração.
   Dois homens explodiram seus próprios corpos em Beirute. Era uma quinta-feira comum para as quarenta e quatro pessoas que se foram com eles. Disseram que foi apenas o início.
   Duas barragens se romperam em Minas Gerais, espalhando uma avalanche de lama, areia, óxido de ferro e medo por uma cidade inteira. Não foi um acidente. Não foi uma catástrofe imprevisível. E não foi emitido nenhum sinal de alerta para os mais de seiscentos moradores que tiveram suas casas devastadas.
   Milhares de pessoas discutem sobre qual tragédia devem apoiar, criticando a posição um do outro, trocando acusações vazias e sem sentido. Ninguém oferece a mão a quem precisa.

   Rios de sangue, rios de lama, rio doce, rio seco.

  Há menos de um mês, um policial confundiu um macaco hidráulico com uma arma e matou dois mototaxistas. Todos os dias, traficantes e assaltantes tornam-se assassinos, simplesmente porque a vida de outra pessoa atrapalhou a sua. Mais tarde, são mortos também. Porque no Brasil não há pena de morte, mas "bandido bom é bandido morto".
   Treze mulheres são mortas por dia, apenas por serem mulheres. A cada sete dias, um homossexual relata sofrer uma agressão. Semana passada, vi um carro fechar uma moto propositalmente, por ter levado uma buzinada. Ontem, um vizinho xingava a mãe de outro.

   A gente esqueceu o que é o amor.

   Essa coisa frágil e rara, que deve ser cultivada para que floresça. É muito mais fácil cultivar ódio. Não é necessária muita dedicação para que o ódio nasça, para que ele cresça, para que dê frutos. A raiva, o preconceito, a falta de respeito e o rancor preenchem o espaço de um coração com plenitude, o que faz com que ninguém queira lutar contra estes sentimentos ruins. Afinal, o que iríamos ganhar substituindo o ódio pelo perdão? Que vantagem teríamos em amar alguém que não é do nosso círculo familiar ou social, um completo estranho que não nos daria nada em troca do nosso amor fraterno? O que é mesmo o amor fraterno? 
   As pessoas costumam rir quando falo de amor. Porque falo muito de amor. Porque consideram ingenuidade pensar que o princípio de tudo deve ser o amor ao próximo e que o princípio de toda tragédia é a falta deste amor. Algumas até fingem concordar comigo, desde que essa regra só se aplique aos outros. Desde que elas não precisem amar a vizinha chata que atormenta, desde que possam continuar xingando uns aos outros no trânsito, desde que não precisem perdoar o ex-marido que a traiu ou o pivete que roubou seu celular. As pessoas não enxergam as outras como pessoas. Não sabem estender a mão, compreender o outro lado, ajudar quem não têm a obrigação de ajudar. Não ensinam isso às crianças. Não aprendem isso na internet. Não conhecem o significado de empatia e solidariedade.
   Não será necessário nenhum grande meteoro ou dilúvio para acabar com a raça humana de uma vez. Ela mesma será a responsável por seu fim, pouco a pouco.

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As desvantagens de ser invisível

14:03 Kamila Siqueira 0 Comments

14/10/2015




   Desde aqueles dias em que dividimos guarda-chuvas e esperamos por um ônibus que nunca passava, a Terra deu em torno de si mesma, mais ou menos 300 voltas. As coisas mudaram uma, duas, três, trezentas vezes. Meu cabelo cresceu, eu troquei de emprego, comecei a terapia, fiz uma tatuagem. Acredito que sua vida também tenha mudado por um milhão de vezes e sou grata por ainda estar por perto para te ver crescer. Eu me sinto feliz, na maior parte do tempo e creio que você também se sente bem. Mas hoje experimentei uma coisa dentro do peito, uma sensação ruim que eu não via há muito tempo: eu me senti um fantasma.

    Bu!

   Não digo que a culpa foi sua, apesar de você ser a causa. Eu entendo seu lado, sei porquê omitiu aqueles dias da sua história. Sei porquê contou como se a Terra tivesse dado 365 voltas completas, ininterruptas. Mas não posso negar que dói. É como se eu assistisse minha pele, que outrora te tocava, tornar-se transparente e invisível à luz do sol. Como se eu fosse feita de gotas d'água que escorrem límpidas e se dissolvem em meio ao rio corrente, perdendo-se. Afogo-me.

  Você não foi o primeiro a manter-me em segredo e é isso o que me faz perguntar-me diante do espelho se ainda sou visível ou se já me tornei um fantasma por completo. As coisas são tão reais para mim e nunca deixam de ser. Sendo boas ou ruins, elas me deixam marcas que carrego comigo pelo resto da vida. São pequenas peças do quebra-cabeças desorganizado de que sou feita,. Entenda, eu não desejo que a gente volte a dividir um guarda-chuva, mas é que eu guardo as boas lembranças de uma forma tão eterna quanto aquela sua cicatriz escondida pelos óculos. Eu não estou pedindo que me relembre o tempo inteiro e nem que conte toda a verdade a ninguém. Só quero que dentro de você, essa lembrança ainda seja algo agradável. Que você não seja como os outros, que se arrependem, se envergonham e fingem que o fantasma nunca existiu. Que não negue como foram bonitas aquelas tardes de verão e como nosso riso era profundo.
   Os outros esqueceram-se antes mesmo de eu ir embora por completo. Não quero ser mais um fantasma, não de novo, não dessa vez. Por isso te peço, enquanto ainda sou visível, enquanto ainda não me dissolvi no mar de memórias corroídas: não se esqueça. Que me lembre em segredo, mas que me lembre. 
   Se eu corria, eu corria demais só pra te ver, meu bem.

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Sobre a falta

00:31 Kamila Siqueira 0 Comments

22/09/2015





Uma e meia da manhã. 
O sono não vem, mas aquela sensação estranha que a madrugada silenciosa traz já chegou. Eu me deito no escuro, na tentativa do silêncio ser menor, do sono ser maior, mas não consigo.
Eu sinto saudades. E é uma saudade esquisita porque não sei bem de onde vem. Eu poderia nomear algumas pessoas de quem poderia sentir saudades. Algumas pessoas que não vejo há tempos, um amor para quem tive de dar adeus depois de tanto tempo, uma amizade que acabou há anos e ainda me faz falta, outra que está aqui e tenho medo de perdê-la. Sinto falta do apoio que gostaria de ter em algumas questões e do abraço que precisava e não veio. Sinto falta de um cafuné, dos dedos entrelaçados, das palavras de carinho inesperadas. Eu tenho alguns bons motivos para sentir saudades. Mas não é deles que sinto.
Ao menos, acho que não. 

Uma e quarenta da manhã. Sento-me na cama, bebo água, encaro o escuro. Me faz tanta falta. Mas o quê? De que ou de quem é esse vazio aqui no peito? A quem pertence este espaço e quem o provocou? Gostaria de poder fazer mais para garantir que não perderei quem por aqui ainda está. Mas a gente não pode garantir nada, não é? Não existe coisa alguma que a gente possa fazer para garantir que não haverá ausência um dia. As pessoas são livres para ir, por mais que às vezes me doa.

Uma e quarenta e cinco. Deito-me de novo, encaro as estrelas de mentira que brilham no escuro. Gosto delas porque me lembram uma parte muito importante de mim mesma. Eu sinto falta de mim mesma às vezes. Sinto falta da convicção antiga que possuía, dos sonhos que antes pareciam-se mais com objetivos concretos, da quantidade de livros que lia e, principalmente, dos que escrevia. Há tanto o que escrever. Sinto saudades dos personagens que ainda rondam minha mente, implorando para sair, para que eu dê voz aos seus diálogos. Sinto falta dos meus antigos planos para mim mesma. Dos prazos traçados, das esperanças, das certezas quanto ao futuro. Sinto falta de não ter tanto medo. De dar passos no escuro. De mergulhar fundo sem dar ouvidos às advertências que tentam me segurar. De sentir à flor da pele sem me preocupar com os julgamentos. Sinto falta de algumas canções, de algumas memórias, de alguns costumes e das luzes de natal. 

"As coisas mudaram." Digo a mim mesma.
As coisas mudaram.

Duas horas da manhã. Durmo.

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Deixe que o amor morra

10:47 Kamila Siqueira 0 Comments

 31/08/2015



"- Eu não entendo porque você ainda se tortura desse jeito. 
 - Não sei, eu só queria... sei lá... consertar as coisas."

O amor acaba.
Eu sei disso, você sabe disso, mas a gente não sabe colocar isso em palavras direito, que dirá colocar em prática. Eu não tenho boas histórias sobre fins, você sabe. Mas é isso que me faz agradecer por sempre ter existido um fim.
Imagine estar condenado a amar alguém pelo resto de sua vida, mesmo quando esse amor já não faz bem? Imagine ter um amor eterno, quando ele já se tornou tóxico? Não, ainda bem que o amor acaba. Graças a Deus o amor morre.

Assistir um amor morrer é como assistir alguém morrer: é rápido e definitivo. Às vezes a gente nem quer que ele morra assim, pra sempre mesmo, mas se a gente não escolhe a hora da própria morte, por que escolheríamos as mortes de nossos amores? O amor se esvai rápido como a própria vida. Morre em uma noite escura ou durante o bom dia matinal, no fim da tarde, com o pôr do sol. Morre em um susto, com um tiro. Morre com uma palavra errada, com um ato imperdoável, com um deslize acidental. O amor morre de uma vez por todas, sem volta, como a própria vida. E dói, como a própria vida.

E, como quando uma pessoa morre, também é tolice esperar que o amor se levante no dia seguinte à sua morte. Você não abre o caixão de uma pessoa morta para tentar convencê-la de que ela ainda pode viver. Não dá para consertar o que já está morto. Você não liga de madrugada para um falecido para perguntar como ele está. Você não manda uma mensagem de texto para alguém que já foi sepultado. Então por que faz isso com um amor que já se foi? Se tentar impedir que enterrem alguém que já se foi, aquilo irá apodrecer em suas mãos, é questão de tempo. Meu amigo, ouça o meu conselho: às vezes a gente tem que respeitar o ciclo da vida, por mais que ele doa.

E vai doer. Eu sei que dói. E tudo bem doer, você pode sentir a dor, você deve sentir a dor. Como quando alguém morre. Você pode entrar em um luto profundo, pode mergulhar em suas próprias lágrimas, pode se perguntar por que a vida é tão cruel. Mas depois você precisa continuar vivendo. Mesmo que ainda haja dor, mesmo que ainda fique a saudade, mesmo que você ainda guarde aquele par de meias que ele esqueceu na sua gaveta antes de morrer, mesmo que você não entenda aquele fim repentino e cruel. Você precisa respirar fundo e lembrar-se de que ainda está vivo.

Ainda há vida lá fora, meu bem. Sempre houve. A gente acha que vai ficando mais difícil a cada queda, mas na verdade a gente já aprendeu a cair do jeito certo faz tempo. E a gente sabe se levantar. É só que às vezes o chão parece tão mais seguro que a gente se acomoda. A gente não quer mais se levantar para encarar o resto da caminhada. Eu também ainda não consigo andar direito desde a última queda. Ainda tenho uma ferida que, de vez em quando, eu arranco a casquinha e ela sangra de novo. E eu quero me sentar de novo no chão e não caminhar nunca mais. Mas eu não posso, meu bem. A gente não pode se entregar. A gente não pode se sentar e deixar a vida correr sem a gente viver, porque a vida é nossa, só nossa e de mais ninguém. Só a gente pode fazer as coisas acontecerem. Só a gente pode mudar o nosso mundo e deixar tudo bonito de novo. Só a gente pode deixa a dor pra trás.

Por enquanto, está tudo bem se você quiser ficar sentado mais um pouquinho aí, até que a dor desse ralado no joelho diminua e você consiga ficar em pé de novo. Mas, quando a ferida cicatrizar, não arranque a casquinha. Deixe o passado no passado. Fica mais fácil caminhar desse jeito, sem ficar retornando ao lugar onde você tropeçou. Você vai conseguir caminhar de novo com os dois pés bem firmes no chão, eu prometo. Só deixe o amor morrer de uma vez por todas.

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Entrelaço

00:54 Kamila Siqueira 3 Comments


   10/08/2015



   As mãos sempre foram minha parte do corpo preferida. As mãos entrelaçadas, para ser mais precisa. Porque, veja bem, a gente tem o costume de abraçar até quem acabamos de conhecer. Você cumprimenta alguém que mal conhece com um beijo na bochecha e um abraço. Você toca na pele de desconhecidos. Beija na boca, beija de língua, dorme junto. Nada disso é estranho. 
   Mas você não entrelaça seus dedos com os de alguém que mal conhece. É muito mais difícil entrelaçar as mãos do que ir para a cama com alguém. Requer muito mais intimidade, mais olho no olho, mais corações que respiram juntos. Aquele momento singular em que duas pessoas dão as mãos pela primeira vez, aquela dúvida e insegurança que bate segundos antes da primeira tentativa de entrelaçar os dedos. E aquele calor dentro do peito ao sentir que o outro aceitou seus dedos e apertou o abraço das mãos. 

   Um dos melhores momentos da humanidade.

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Por que temos vergonha dos nossos sonhos?

18:49 Kamila Siqueira 0 Comments

 25/07/2015

Sempre disse à minha mãe que nasci para ser artista. Durante a infância, tive as fases de querer ser pintora, cantora, dançarina, atriz. Durante a adolescência, fiz aulas de piano por um ano. Aos 19, aprendi a fotografar. Mais tarde, fiz aulas de dança de salão. Fui uma criança tímida, mas gostava de imaginar que quando crescesse, isso iria mudar. Fazia as clássicas apresentações de canto e dança para a família no natal e aos onze anos, fui a Julieta na peça shakespeariana da escola. E no meio de todas as brincadeiras artísticas, havia a escrita.
   Escrever era diferente. Para ser atriz, eu imaginava que um dia faria um curso de teatro. Ou um dia aprenderia a cantar ou a tocar um instrumento. Mas nunca pensei em aprender a ser escritora porque, de alguma forma, eu já o era. Desde que aprendi a escrever. Os meus contos e historinhas mais antigos foram feitos em bloquinhos de papel, agendas, caderninhos. Aos seis, sete, oito anos. E não consegui me livrar do vício desde então.
   Aos quatorze, depois de passar por um dos comuns "períodos socialmente difíceis da adolescência na escola", escrevi um conto sobre suicídio. Não que a ideia do ato se passasse pela minha cabeça, era apenas um conto fictício derivado de angústias pessoais. Uma colega de classe o leu. E chorou. Aquele foi um dos momentos em que eu tive certeza absoluta de que era aquilo que deveria fazer pelo resto da minha vida.
   Mas não demorou muito para que eu percebesse que as coisas não eram tão simples assim. Aparentemente, se o que você gosta de fazer não está em uma lista de cursos universitários, você deve esquecer tal opção e, no máximo, procurar por algo parecido. E então, passei a mentir. De "Quero ser escritora" para "Não sei o que quero fazer, talvez jornalismo, letras, publicidade..." Pois bem, estudei, me formei, arrumei um emprego "normal".
 
   E passei a ter vergonha de tudo o que escrevo.

   Por que é que a gente tem vergonha dos nossos sonhos? Porque eles são julgados. Porque fazer arte ou qualquer coisa que fuja do padrão fazer-um-curso-e-procurar-um-emprego-tradicional deve ser levado apenas como um hobbie e não uma profissão. Porque tudo bem você ter o sonho de ser médico e passar décadas dedicando-se a isso, mas você não pode querer ter uma banda de rock. É até aceitável preferir estudar para um concurso público em vez de fazer uma faculdade, mas você não pode querer ganhar a vida como artista plástico.
   Admitir que queremos a arte por tempo integral é quase que sair do armário. "Mãe, pai, amigos, sociedade: eu sei que vocês não esperavam isso de mim. Acreditem, eu também não queria ser assim.Vocês acham que eu gosto de ser alvo de risadas? Tentei mudar, tentei gostar das outras coisas.  Mas eu nasci assim. Me desculpem, mas eu acho que sou... (pausa para respirar fundo e pronunciar a próxima palavra bem baixinho) artista."
   Quase ninguém leva isso a sério.
   "Você vai passar a vida toda brincando de ser ator?" "Olha, eu não estou dizendo que você não pode ter um grupo de pagode, mas arrume um trabalho de verdade além disso". Já parou para pensar que as mesmas pessoas que dizem isso, consomem arte? Elas vão ao cinema uma vez por semana, ver um filme hollywoodiano. Vão ao teatro prestigiar um humorista. Leem George Orwell antes de dormir. Se emocionam com um concerto da orquestra sinfônica. Por que é que a orquestra sinfônica é tão aclamada e um grupo de pagode é visto como "um bando de gente que não tem mais o que fazer"? Por que é que não podemos perder o novo filme do Tarantino, mas estudar cinema só "depois de ter uma formação de verdade"? E por que é que John Green é o segundo autor mais bem pago do mundo e meus romances precisam ficar escondidos nas gavetas? Eu gosto do John, ele também não poderia gostar do que escrevo?

Por que é que a gente têm vergonha dos nossos sonhos?
Por que é que a gente os acha bobos e idiotas?
Por quê?

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A menina e o telescópio

17:36 Kamila Siqueira 0 Comments

04/07/2015


   Era uma vez uma menina que possuía um telescópio. Passava horas durante as noites explorando o céu e suas estrelas, planetas, satélites. Divertia-se com as histórias mitológicas por trás das constelações e ria das histórias da lua e seus dragões.
   Uma noite, ela teve a sorte de deparar-se com uma estrela cadente. E sua alma encheu-se de alegria. Nunca havia visto algo tão mágico e de tão atordoada que ficara, não teve tempo nem mesmo para fazer um pedido. Foi tão rápido e efêmero que ela passou dias perguntando-se "Isso realmente aconteceu comigo?"
   Desde então, a menina nunca mais desgrudou os olhos do telescópio, esperando conseguir ver mais uma vez a estrela cadente. Noite após noite, varria o céu com os olhos procurando-a, chamando-a, desejando-a. Até que ela veio novamente. Mas, de novo, de tão boba que ficou, a menina nem falou. Sua mente paralisou, sua voz lhe abandonou, o coração suspirou. E, de novo, ela grudou os olhos no telescópio e esperou.
   Não é que ela não fosse feliz sem o asteroide. Ela já vira estrelas muito mais bonitas e satélites muito mais interessantes que aquele pequeno risco no céu. As crateras lunares, os planetas de brilho constante, tudo era tão fascinante! Mas a menina nunca conseguiu ter uma conexão tão profunda e natural quanto a que tinha com aquela viajante.
   Conseguiu vê-la durante muitas vezes, mas nunca, nunca era o suficiente. Sentou-se em frente o telescópio e perdeu-se no tempo, dedicando seu coração à efêmera estrela cadente.
   O tempo está passando e a menina continua lá, esperando pelos momentos rápidos e pequenos que a enchem de alegria. No interlúdio destes momentos, ela não se afasta do telescópio nem por um instante. Não olha à sua volta, não sabe o que acontece, não mora mais na Terra, está sempre distante. A menina já não é mais uma menina, mas ela não percebe. O tempo já passou, mas ela não se esquece. A vida está fluindo, o barco está partindo, o mundo a puxa para o chão, mas ela não consegue desviar sua atenção. Alguém, por favor, ajude-a. Tire-a dali, quebre o telescópio, mate as esperanças, liberte-a do ópio. Faça-a enxergar como ela está cega. Alguém, por favor, arranque fora seu coração.

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Solstício de inverno

10:36 Kamila Siqueira 0 Comments

22/06/2015


- Frio...- eu murmuro no meio da noite, encolhida entre os lençóis.
- Frio? - você murmura de volta, entre o sono e a realidade. Imediatamente, enrosca seu corpo ao meu.
E eu sinto. A pele morna, a respiração que não me incomoda nem um pouco, meu coração batendo pacificamente, reconhecendo aquele toque e aquele velho sentimento. Felicidade genuína.

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- E como você se enxerga daqui a cinco anos?

20:59 Kamila Siqueira 0 Comments

07/05/2015

   
Eu? Bom, eu me imagino dançando. De saia rodada, no meio de um salão bem grande. Talvez eu tenha um par que me conduza nos passos mais difíceis ou talvez meus sapatos sejam meus únicos guias. Tudo bem também, eu já aprendi a girar sozinha. Mas o salão é grande demais para eu dançar sozinha, então todas aquelas outras pessoas especiais também estão lá. Algumas dançando, outras sorrindo, talvez segurando taças, brindando algo muito importante que a gente deveria brindar todos os dias. Eu não sei direito o que está acontecendo, o que sei é que a luz do salão é amarelada, num tom poente, exatamente como a luz que entra pelas janelas grandes. Porque eu gosto de amarelo. Talvez minha saia rodada também seja amarela e meus sapatos se prendam com uma tira aos meus pés, que se perdem e flutuam do chão. Cansei de perder tempo fincando os pés no chão.
    Eu sorrio sem saber por que ou para quê, dou risadas, gargalhadas. Meu coração bate forte contra o peito e eu já não tenho medo algum, giro com a certeza de que não vou cair, sei que minhas pernas finas não foram feitas para tropeços e que tenho todo o equilíbrio do mundo em meus joelhos. Nada vai me derrubar, nem mesmo se meus sapatos bonitos forem de salto alto. Eu tenho todo o controle sobre meu próprio corpo. Tenho controle sobre minha própria vida, sobre meu tempo, sobre meus passos. 
    Eu não sei qual música está tocando ao fundo, mas sei que algo toca e que os acordes me tocam. Posso sentir meu sangue correndo, meu corpo quente, minha vida pulsando. Eu não perco o fôlego nunca, não preciso parar e respirar, meus pulmões estão sempre cheios de ar e de vida. Minhas mãos não seguram a barra do vestido nem arrumam o cabelo, que está perfeitamente bagunçado. Eu não sei muito bem como cheguei até ali, mas sei que realizei aquele sonho de sempre e que finalmente estou onde deveria estar. Minha alma pulsa dentro de mim e ri junto comigo, eu finalmente aprendo a gostar do meu sorriso e o distribuo sem medo, minhas mãos não tremem, minha garganta não engole um nó, meus olhos não piscam desesperadamente para evitar o choro. Eu estou livre, completamente livre. E, acima de qualquer coisa, estou absolutamente, integralmente e irrestritamente feliz.

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Veneno

23:42 Kamila Siqueira 0 Comments

13/04/2015


  Antes era amor. Cada batida do meu coração, cada lágrima e cada gota de suor que brotava do meu corpo era amor. E não por única pessoa, era amor pelas pessoas, por todas elas. Pelas risadas, pelas companhias, pelo tempo gasto da melhor forma possível, pelas conversas, pelos abraços, pelas mãos. Era amor puro, amor pelas pessoas, mesmo quando não havia razões para amar. Eu transbordava
   Agora eu me perco dentro de mim mesma procurando por esse amor. Eu não sei quando foi que o perdi. Não sei quando foi que fiquei surda às risadas, alheia às conversas e quando os sorrisos passaram despercebidos aos meus olhos. Como foi que deixei isso acontecer? Quando foi que parei de agradecer por cada céu bonito que meus olhos encontravam?
   Eu não soube lidar com todos os fatos que aconteceram, um atrás do outro, não soube manter a sanidade e o amor. Em vez disso, eu plantei uma semente escura dentro de mim mesma, negando o fato de que um dia ela iria brotar. E agora ela germinou. Brotou, cresceu, deu flores podres e frutos ruins. Eu envenenei meu corpo com a raiva que injetei em mim mesma. Meu sangue está contaminado por toda essa impaciência e descrença, por todo esse ódio que me consome e que só faz mal a mim, só destrói a mim mesma. Estou me corroendo. Deixei que o sangue contaminado corresse por todo o meu corpo, alcançasse meu coração, meus pulmões, os calcanhares e as pontas dos dedos. Minha alma corrompeu-se. Eu não sei como deixei isso acontecer, como pude permitir que minha alma fosse sugada pelo meu coração contaminado? Agora não sei mais como controlar as palavras cortantes que saem dos pulmões com força e dilaceram quem encontram pela frente. Eu queria mantê-las longe de você. Queria conseguir impedir que as palavras vazassem do meu corpo infectado, mas sinto que as abelhas presas em minha garganta precisam sair para não me ferroarem por dentro.
   Me desculpe por estar agindo assim ultimamente. Eu juro que não sou assim, juro que este não é o meu normal. Eu não me tornei isso. Não quero ter me tornado isso para sempre. Eu só preciso me livrar destas ervas daninhas que tomaram conta de mim, só preciso conseguir me livrar dessas células ruins que engoliram minhas alegrias, só preciso drenar este veneno. Eu juro que estou me esforçando para isso. Prometo que vou drenar meu sangue e purificá-lo de novo. Prometo que vou voltar a sentir todo aquele amor que me era intrínseco. Ele ainda está aqui dentro, eu sei que está. Eu só preciso enxugá-lo de todo o mal e cuidá-lo de novo. Só preciso plantá-lo de novo e voltar a semeá-lo. E eu vou amar de novo para que haja amor. Eu prometo.

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Carta ao Eu de dez anos atrás

20:28 Kamila Siqueira 0 Comments

26/03/2015



   2005. 14 anos de idade, certo? A primeira coisa que eu tenho a te dizer é: calma. Vai ficar tudo bem.  Este ano você vai ter sua primeira queda, a primeira de três (até agora). Mas eu juro que as coisas vão ficar bem e que nada é o fim do mundo. Dentro de pouco tempo, você vai olhar para trás e se perguntar por que se desesperou tanto por tão pouco. Respira, vai dar tudo certo. É que você está crescendo. Esse é o ano em que você definitivamente deixa as bonecas para trás e se torna uma adolescente um tanto quanto - você odeia essa palavra - dramática. Respire de novo. 
   
    Algumas coisas permanecem as mesmas aqui em 2015. Harry Potter continua sendo uma das coisas mais legais do mundo. A casa da sua avó continua sendo seu lugar preferido no mundo. Você continua sendo bastante ansiosa e estressada. Aliás, faça um favor a nós: cuide disso o quanto antes. Dez anos depois daí, você vai ter que lidar com uma gastrite e outros problemas de estômago bem chatos causados por toda essa ansiedade.
    Aí no seu ano, você ainda não sabe qual profissão quer seguir. Aqui no meu ano também não. Mais ou menos. Você vai fazer faculdade e, de fato, vai escolher uma das profissões mais divertidas do mundo. Mas logo descobrirá que não tem o menor talento para ela. Mas a gente vai dando um jeito até encontrar alguma outra coisa, sem ficar parada. Relaxa. A gente tá dando um jeito.
    Sabe aquele garoto de quem você está começando a gostar, mas acha que ele nunca vai te olhar com os mesmos olhos? Bom, ele vai. Daí um ano, mais ou menos. E eu te peço para aproveitar cada segundo que isso durar porque vai te ensinar tantas coisas. Não tente imaginar o que acontecerá com vocês dois porque a vida vai te surpreender por um milhão de vezes. Não posso te contar o fim dessa história, me desculpe (mas só não te conto porque eu também ainda não sei).
    Vão existir outros amores. Bem grandes. Você achava isso impossível, mas algumas pessoas vão se apaixonar por você. Algumas delas vão te machucar sem querer e você vai machucar algumas pessoas sem querer também. Outras vão te machucar de propósito, só para te ver sangrar. Saiba quando se afastar.
     Você não se dá muito bem com as pessoas da sua escola, mas tente não ligar muito para isso. Ah, e não se sinta mal por ser considerada uma garota certinha, por não ficar bêbada nas festinhas e não beijar todos os garotos da turma. Você vai fazer tudo isso e um pouco mais, só que mais tarde e com mais responsabilidade, o que é bom. Das suas amigas daí, só duas vão permanecer. Você vai fazer muitos amigos pelos próximos 10 anos. Vai demorar um pouco, mas você vai encontrar aquela turma que é "um por todos e todos por um". São pessoas que te fazem bem feliz e por quem você tem um amor bem gigantesco. Valem a pena.
    Você vai gostar da sua aparência física um dia. Sério. Pode parecer estranho, mas você vai se olhar no espelho e se achar bonita. Juro que vai gostar até do seu cabelo (não hesite em tingi-lo de ruivo quando surgir a vontade). As orelhas ainda são um problema, quem sabe a gente as aceite nos próximos dez anos.
    Comece a ouvir uma banda chamada Dashboard Confessional o quanto antes. E quando eles vierem ao Brasil em 2013, esqueça todas as desculpas e vá ao show, por favor. Vamos tentar consertar esse meu erro.

     Se esforce para não ter tanto medo. Às vezes a vida assusta bastante, mas você tem toda a força de que necessita dentro de você. Siga em frente. Faça todas as coisas que sente vontade de fazer e que estão ao seu alcance, você não tem todo o tempo do mundo, aproveite enquanto pode. As coisas mudam o tempo inteiro, não perca oportunidades por medo. Curta o tempo que tem com as pessoas ao seu redor porque elas também não estarão por perto para sempre. Ame-as e demonstre o que sente.
    Continue sonhando. Por mais que seus sonhos pareçam um pouco complicados, tenha em mente que improvável e impossível são coisas diferentes. Às vezes as coisas demoram mais do que a gente gostaria, às vezes elas vêm em formatos diferentes do que a gente imaginou. Mas sonhar sempre, sempre, valerá a pena.

    Por último e mais importante, te peço uma coisa: escreva. Eu sei que você já inventa historinhas desde que aprendeu a escrever, mas é nesse ano aí que isso se tornará um hábito mais sério e frequente. Escreva. Sobre o que você sente, sobre o que vive, sobre o que imagina, sobre tudo e qualquer coisa. Escreva. Aqui no meu ano, isso ainda não nos levou a lugar nenhum, mas é a única coisa que vai te fazer sentir orgulho de si mesma. É onde você se encontra e se reconhece, sua alma no papel. É o que te faz verdadeiramente realizada. Completa.

   Você vai ser feliz, menina. Eu juro.

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Sobre um sopro

01:43 Kamila Siqueira 0 Comments

28/02/2015


Eu costumava desviar os olhos, entende? Por não saber o que dizer quando me encaravam por muito tempo. Mas eu não consegui desviar dos teus. Por algum motivo, quando me dei conta, já estava perdida entre o risco da lente dos seus óculos e aquela cicatriz perto do olho esquerdo. E eu descobri tantas cores novas dentro deles, tantos castanhos que nunca havia visto antes, que não consegui encontrar meu caminho de volta. Meus passos se perderam pelas cores claras daquela estação.

Eu sei que eu disse que não escreveria nada sobre isso porque não valia a pena, porque foi tão breve quanto um sopro. Mas é que o sopro tirou lascas de mim. E eu juro que estou tentando evitar preencher o vazio das lascas com minhas palavras, mas preciso dizer apenas uma ou duas. Só um pouco. Só sobre o teu sorriso.

Não me refiro àquele sorriso que todo mundo conhece e que você distribui tão magicamente por cada trajeto que faz. É uma marca sua e eu posso contar nos dedos quantas vezes te vi triste o bastante para abdicar desse sorriso. Mas eu me refiro ao outro. Aquele que mesmo te conhecendo tão bem, eu não conhecia. Aquele que vem de dentro de você, quase inconscientemente. Você tem consciência do quanto aquele sorriso é bonito? Você tenta disfarçar, mas desculpe, não funciona. Ele escapa dos teus lábios, tão escorregadio quanto sua voz que diz, um pouco mais grave que o normal: "Eu não sei direito o que está acontecendo, mas eu estou gostando".
Suas sobrancelhas tremem e lá vem o sorriso. Você quase tenta resistir e é isso o que eu gosto nele. Porque eu também quase tento resistir, quase tento não ceder, quase tento não seduzir, quase tento não rir das tuas piadas sem graça, quase tento engolir essa vontade de sentir sua pele na minha o tempo inteiro... mas de repente eu estou retribuindo o sorriso quase sem querer também. E a gente se torna aquele verão de novo. Olho o brilho claro dos seus olhos sob o sol e me encontro de novo onde um dia me perdi.

Eu não sei mergulhar fundo, mas poderia me afogar nos teus olhos sem protestos.

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Por meus olhos

01:11 Kamila Siqueira 0 Comments

04/02/2015


Pela chuva que cai pesadamente sobre meu corpo, sem guarda-chuva, sem casaco e sem preparo. Pelas gotas que atingem meus olhos quando encaro o céu molhado e a água que meus lábios saboreiam sem querer. Pelo céu estrelado, onde todas as estrelas sorriem e as nuvens me escondem a lua. Pela grama sob meus pés e meus sapatos encharcados que fazem barulho enquanto caminho e pulo. Pelos pulos. Meus saltos desajeitados e incontroláveis, por eles. Pelos sorrisos que vejo e as gargalhadas que ouço e as vozes que cantam e os corpos que dançam. Pelo som das vozes. Pelo calor dos abraços, a firmeza dos braços e o nó dos laços. Pelos passos que acompanham, que ecoam em uníssono e reverberam em conjunto. Pelas mãos. Ah, as mãos. Pelas mãos que se encontram quase sem querer, os dedos que se esbarram, se encostam e se entrelaçam. Pelos sorrisos trocados. As bocas que se confundem, se misturam e se derretem. Pelo suor e pelas lágrimas. As lágrimas que se derramam de olhos de todas as cores, quentes, frias, misturadas com chuva ou secas no meio das bochechas. Pelos olhos que enxergam as cores. Pelas cores. Pelos cheiros das flores, pelas frutas e os sabores, pela textura da terra. Pela terra molhada. Pelas asas dos pássaros, dos insetos e dos aviões. Pelas luzes das cidades e as estrelas do mar. Pela ressaca das ondas e a voz dentro das conchas. Pelos sussurros no ouvido do coração. Pelo peito que segura os batimentos gritantes lá de dentro, ansiosos e juvenis. Pelo corpo que se adapta, se conecta, se encontra. Pelo ar puro nos pulmões e o vento no rosto. Pelo calor do sol nos dias frios, pela sombra preciosa nos dias quentes, pelas nuvens que passeiam sob disfarces de bichinhos de algodão pelo céu azul. Pelo céu azul.

Pela minha pele que sente tudo isso, minha carne, minha alma e meu coração. Eu sou grata.

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Precisamos falar sobre a violência contra a mulher. E agora é a minha vez.

01:51 Kamila Siqueira 4 Comments

04/01/2015


Eu nunca escrevi sobre as coisas que você fez.
Falei sobre isso algumas vezes, mas sempre entre amigos, em tom de piada, como forma de amenizar tudo dentro de mim. Agora, depois de ler tantas coisas sobre este tema, depois de presenciar certas coisas, depois de me identificar e de sentir as palavras subindo pela garganta, querendo sair, escrevo.

A Lei Maria da Penha entende como formas de violência, entre outras:
I - a violência física;
II- a violência psicológica;
III- a violência sexual;
IV- a violência patrimonial;
V- a violência moral.

Você parecia perfeito quando apareceu. Bonito, sorridente, sociável. Todo mundo gostava de você. E, olha que sorte, foi logo de mim que você gostou. Perfeito. Ótimo. Incrível. Até a primeira briga.

"Eu te odeio, sua vadia filha da puta."

Achei que você era meio nervoso, sabe? Os primeiros xingamentos eu ignorei, deixei passar. Mais tarde a gente conversaria e tudo ficaria bem. E ficava mesmo, por alguns dias. Mas você era o médico e o monstro e eu não tinha como prever quando o monstro apareceria.
Não me lembro exatamente quando você começou a implicar com meus amigos também. Pedia para eu não sair com eles, para ficar com você naquela noite, para ficar com você naquele fim de semana, para passar o mês de férias com você, para não sair com eles nunca mais. Eu saía. Você dizia que eu iria sofrer as consequências. Eu parava.

E quando começou a implicar com minha família? Porque às sextas-feiras eu gostava de jantar em casa porque era dia de pizza. Mas você queria que eu ficasse o tempo todo com você e inventou um dia da pizza com a sua família também, do qual eu era obrigada a participar. Todas às sextas-feiras. E se eu faltasse? Ah, eu não queria nem imaginar.
"Você é uma escrota de coração frio".

Eu guardei as mensagens com ameaças e xingamentos. Quando mencionei que eu poderia ir à polícia, você respondeu bem calmamente: "O que você acha que eles vão fazer? Eu nunca encostei um dedo em você".

"II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação"

Quando você me xingava dos piores nomes do mundo, era violência contra a mulher. Quando você dizia que tinha nojo de mim, era violência contra a mulher. Quando você dizia que meu corpo era feio, era violência contra a mulher. Quando você dizia que eu devia mudar o cabelo e fazer algo para mudar meu corpo, era violência contra a mulher. Quando você dizia que aquelas roupas não me caíam bem, que aqueles sapatos eram horríveis e que você não gostava daquele batom, era violência. Quando você me mostrava fotos de mulheres bonitas e dizia que eu deveria ser como elas, era violência. Quando você dizia que tinha vergonha de andar comigo em público porque meus braços e minhas pernas eram muito magros, era violência contra a mulher.
"Você tem estrias demais."
Quando você enviou mensagens a todos os meus amigos dizendo que tinha nojo deles também, foi violência. Quando você me fez recusar um trabalho porque dizia que eu não era boa naquilo e que você faria melhor (mas recusou o trabalho), foi violência. Quando você tentou espalhar fofocas sobre minha intimidade e vida sexual pela faculdade inteira, foi violência. Foi agressão.

Eu terminei com você e você tentou se matar. Três dias na UTI. Eu voltei. Ainda tenho um pouco de vergonha de admitir que voltei, ainda ouço as pessoas dizendo que eu merecia ser agredida porque voltei. Ainda luto contra o pensamento de que a culpa era minha. Ainda me arrependo de ter voltado.
Porque, obviamente, tudo piorou. Não tinha como melhorar, você não achava que estava errado. Dizia que tinha "uma doença". E que eu deveria "ser mais compreensiva". Mas eu não fui.

"Sua filha da puta de merda."

Quando você disse que eu teria que escolher entre você e os meus "amigos nojentos", eu os escolhi. Quando você não aceitou o fato de que eu queria passar o natal com minha família em outra cidade, eu fiz minhas malas e viajei. Eu terminei com você por telefone porque tinha medo do que poderia acontecer pessoalmente.
E você fez da minha vida uma montanha russa entre o inferno e o purgatório.
"Minha vontade é de encher sua cara de porrada."  "Você vai sofrer as consequências da sua escolha".  "Você vai ter uma surpresinha". "Eu vou destruir a sua vida".
Você inventou mentiras e histórias absurdas para me afastar das pessoas. Funcionou com uma ou duas.

"V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria."

 Mas ainda bem que tenho família e amigos incríveis que cuidaram de mim. Não sei ao certo quanto tempo tive que ir e voltar do trabalho com meu pai, por medo de você aparecer, ou quantas noites você fez plantão na porta do meu prédio. Foram meses. Ninguém sabe o tamanho do meu medo.
Meses depois, você me enviou uma mensagem perguntando como andava a minha vida. Assim, como se nada tivesse acontecido. Eu ignorei. De tempos em tempos, uma nova mensagem e eu sempre ignorava. Há pouco mais de um mês, recebi um e-mail seu, perguntando casualmente como eu estava e dizendo para mandar notícias. Obviamente, eu ignorei.
Mas, se este texto chegar a você, eu te digo aqui como estou:
Minha vida começou depois que te expulsei do meu mundo. Como quando você acorda de um pesadelo horrível e percebe que está em sua cama, em sua casa, com seus pais dormindo no quarto ao lado. Seguro. Você me fez sentir menos mulher, menos humana. Um lixo. Mas eu tive a ajuda de muitas pessoas para descobrir o valor que sempre tive e que você tentou tirar de mim. Descobri o quanto sou bonita, o quanto meu corpo é perfeito, o quanto amo meu cabelo, minhas roupas e minhas maquiagens. Continuo com os mesmos amigos que você odiava e até fiz novos amigos. Saio com eles pelo menos uma vez por semana. Ah, agora eu bebo um pouquinho de vez em quando porque ninguém mais me proíbe disso. Às sextas-feiras tem pizza lá em casa com a família e aos sábados assistimos a seriados de super-herói que meu pai gosta. Conheci outros homens, que me trataram muito bem, que enxergaram o meu valor, que me fizeram sorrir e que - pasme - gostaram até da minha aparência física. Me apaixonei e pelo menos um deles se apaixonou por mim também (sim, é possível!). Escrevi um livro, comecei outro, troquei de emprego, cortei o cabelo. Eu tô feliz como nunca fui na minha vida inteira e sou grata por absolutamente tudo o que tenho. Tô cercada de coisas boas e de pessoas maravilhosas e tenho um amor enorme transbordando de dentro de mim. Se você me visse na rua, não me reconheceria porque nunca viu esse sorriso aqui.
É isso.

Lei Maria da Penha: http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/pj-lei-maria-da-penha/formas-de-violencia

Para denúncias de violência contra a mulher, ligue 180.


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