Grão de água

17:23 Kamila Siqueira 1 Comments

   30/12/2016



   Admito que é estranho dar estes passos.
   Logo eu, que sempre tive tantos receios em dar passos para frente sozinha, agora anseio por criar meu próprio caminho. Você consegue imaginar isso? Eu, que sempre sofri por antecipação e afoguei-me tantas vezes em minha ansiedade, agora desejo o desconhecido.
   Eu não sei de onde isso surgiu. É como se um interruptor se ligasse dentro de mim dizendo que está na hora. A minha hora. Aqui e agora.
   É a minha hora de ser cem por cento quem eu sou, de usar toda a minha capacidade para ir mais longe. Para chegar mais alto. De parar de me esconder, de me autossabotar, de me censurar. De parar de pedir desculpas por querer mais, de parar de me diminuir diante de outras pessoas, de parar de achar que eu não posso. Porque eu sou maior do que aparento. Sou mais forte, mais capaz e melhor. Porque não sou mais apenas uma gotinha d'água em um oceano imenso. Sei que ainda não sou tudo o que gostaria, mas estou me tornando algo mais concreto que isso. Mais firme. Como um grão bastante sólido. E sei que tenho toda a capacidade para ser o que quiser e chegar onde eu quiser. Eu só preciso enfrentar.
   Sempre senti que deveria carregar muitas coisas comigo se quisesse ser feliz. Que tinha a necessidade de ter pessoas e coisas comigo. Que precisava delas. Que não saberia viver se as perdesse por algum motivo. E então... Eu não sei muito bem como foi. Talvez as sessões de terapia tenham realmente funcionado ou talvez a maturidade tenha vindo com o tempo ou... sei lá. De repente aquela necessidade já não fazia mais parte de mim. De repente, naquela noite, a ficha caiu. Eu não preciso carregar nada comigo. É claro que ainda amo todos os que sempre amei e ainda quero todas as companhias que amo, mas há uma diferença tão gigantesca entre querer e precisar. Aquela necessidade quase física, aquela dependência que me trazia tantas angústias, que muitas vezes me impediu de fazer o que era melhor para mim por medo da perda, aquela coisa invisível que me segurou durante tanto tempo e me fez desistir de tantas coisas que tive vontade... tudo isso já não faz parte de mim. Carrego na bagagem apenas a minha confiança e os meus talentos. Sei que posso ir longe com isso. Sei que posso ser muito maior do que sou.
   Só preciso, finalmente, ser protagonista da minha própria vida.

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Abalo sísmico

01:56 Kamila Siqueira 0 Comments

  17/12/2016



  Suspiro.
  - Mas é que nós humanos temos um milhão de placas tectônicas dentro da gente e placas tectônicas não permanecem imóveis! - Pausa. Outro suspiro. - Quando eu digo que tô bem é porque estou mesmo. Eu tô legal. Mas, você sabe, as placas se movem milimetricamente a todo instante. Elas estão sempre se encostando ou se afastando, raspando uma na outra, desgastando-se e separando-se. E você sabe o que acontece quando placas tectônicas se movem, não sabe?
  Cinco segundos de silêncio.
  - Terremotos.
  Três segundos de silêncio.
  - Isso. Terremotos.
  Um silêncio mais longo do que aqueles que acontecem após desastres naturais.
  - Quando uma placa milimetricamente se move em minha vida, tudo desaba. Tudo. Eu não consigo segurar as minhas estruturas, não sei como sustentá-las. Não sei como me sustentar. Quando você me pergunta se estou bem e eu digo que sim, juro que estou dizendo a verdade. Mas no fundo eu também sei que a qualquer momento alguma coisa vai se mover, milimetricamente, e que tudo pode desabar em cima de mim. E eu não sei se já aprendi a lidar com essa insegurança.
  Os dedos que seguram a caneta tamborilam por três vezes, fazendo com que a ponta dela manche o papel.
  - O problema aqui é que você luta para continuar sentindo essa insegurança e não para superá-la.
  Cenho franzido.
  - Por que eu faria isso?
  O dar de ombros.
  - Porque é mais fácil. É mais seguro. Enfrentar todos esses medos e ter a certeza de que você vai ficar bem quando tudo desabar significa ter mais controle sobre a própria vida. E isso é assustador. Você já sabe como é estar no chão diante de todo o castelo de cartas desmanchado, já conhece exatamente o gosto da dor, sabe que do chão você não passa. Para você, é seguro cair. Você sabe como a queda é. Por outro lado, você não sabe como é encarar as adversidades dentro dos olhos e empinar seu nariz. Não sabe como é impor seus pensamentos e sentimentos quando alguém tenta passar por cima deles. Não sabe como é bater o pé com segurança e fazer o que é melhor para você. E não saber disso tudo traz um medo gigantesco, porque todos nós temos medo do desconhecido. Então você prefere permanecer frágil, prefere cair a todo instante, porque ao menos as consequências da queda você já conhece. - Pequena pausa. - Você sabe o que os países que sofrem com constantes terremotos fazem?
  - O quê?
  - Eles constroem edifícios mais seguros. Mais fortes. - Longa pausa- Você se lembra da história dos três porquinhos?
  - Claro que sim.
  - Você tem uma casa com quintal. E nesse quintal, você possui todo o material de construção que poderia ter. Você tem tijolos. Tem cimento. Tem areia, pedrinhas, tudo o que precisa. Mas você continua vivendo em uma casa de palha porque acha que assim é mais seguro. Porque acha que assim as coisas não vão mudar e que você vai conseguir manter todos perto de você e que se a casa cair, tudo bem, você já está acostumada com as quedas. Mas as quedas machucam. E você não precisa delas, você pode morar em uma casa de tijolos, você tem tudo em suas mãos para morar em uma casa de tijolos. Para não sofrer mais com as quedas.
  Longo, longo silêncio.
  - Construa sua casa, moça. Tome as rédeas da sua vida e não tenha medo das consequências disso. Não tenha medo das mudanças. A vida é sua, você pode fazer isso. Está tudo bem em construir sua própria casa. Está tudo bem. 

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O guarda-chuva de mentira

17:15 Kamila Siqueira 3 Comments

22/09/2016 




  É difícil acreditar. Quando digo a algumas pessoas, nem todas acreditam. Mas, eu juro, entre todas as suas mentiras e histórias mirabolantes, existiram algumas verdades incontestáveis.
 
  É verdade, por exemplo, aquilo que você disse em nosso primeiro encontro sobre eu ser muito mais bonita pessoalmente do que pelas fotos do instagram. Eu nunca precisei de filtros para ser bonita mesmo. E todas aquelas palavras de admiração que você disse naquela noite, tropeçando nas palavras, entre gaguejos e nervosismo, foram verdades. Foi verdade também o que falou naquela outra noite, quando deitamos na grama e observamos morcegos passeando pelo céu. Você se lembra de dizer que eu era uma companhia tão gostosa que dava vontade de me levar para um lugar distante, com chocolate quente e um cobertor, só para observar as estrelas? Era conversa de conquistador barato, mas eu sou mesmo uma companhia esplêndida, meu bem. Quando me disse que nem acreditava direito que eu estava te dando uma chance, eu ri sem pensar no quanto você estava certo. Você foi um cara de sorte mesmo.
  
  Quando te contei todas as histórias por trás da minha tatuagem e você disse que sou forte, você estava falando a verdade. Sou uma mulher forte pra caramba. E todas as vezes em que me disse que meus olhos eram diferentes, que era legal observar o tom incerto entre o castanho e o esverdeado, você estava certo. Meus olhos são fascinantes. E meu corpo, que seu corpo desejava de um jeito tão lascivo, também é perfeito. "Um poço de luxúria", como você dizia. Sabe aquele batom escuro que comprei e você disse que fiquei muito sexy com ele? Tenho usado-o muito ultimamente. E fico sexy mesmo.
  
  A inteligência que você admirava, ela cresce a cada dia dentro de mim. Lembra como sempre dizia que minha independência era admirável? Por eu ter dois empregos, por nunca querer depender de ninguém, por correr atrás de tudo o que preciso. A minha maturidade para relacionamentos que você achava incomum, meu respeito pelo espaço individual, minha busca por ter meu próprio espaço e saber equilibrar isso com uma relação saudável, a cada dia eu desenvolvo tudo isso mais um pouco. E sou cada vez mais inteira, mais completa. Por mim mesma.
  
  O meu talento com as palavras, meu talento com o trabalho, coisas que você reconhecia no dia a dia. Te ajudei a melhorar um pouquinho seu português. Te ensinaria também aquelas outras coisas que queria melhorar um pouco, caso tivéssemos mais tempo. Não foi o caso.
  
  Lembra daquele dia em que me disse o quanto eu era maravilhosa por ter montado seu currículo, te apoiado na busca por um emprego e ainda me oferecido para ajudar a organizar sua vida financeira no futuro? Você estava certo, eu sou maravilhosa mesmo. E sempre que me agradecia pela dedicação e pelo carinho, meu bem, você tinha toda a razão. Tinha muito pelo que agradecer.
  
  Lembra daquela vez em que sumiu durante um dia inteiro e me procurou à noite, angustiado com algo que havia acontecido? Obviamente, eu nunca soube o que de fato aconteceu, mas nunca vou me esquecer do teu suspiro aliviado ao dizer "Nossa, falar com você é meu melhor remédio". Eu podia te trazer paz, meu amor. Estava sempre disposta a carregar teu coração com minhas próprias mãos para que ele não doesse dentro do teu peito. Meu colo podia ser seu sempre que quisesse. Eu sei dar paz. Sei dar amor. Eu sei proporcionar um milhão de coisas que você não me deixou demonstrar. Eu tenho um amor gigantesco dentro de mim, que estava prontinho para te envolver e te afagar. Eu era sua, meu bem. Eu era toda sua.
  
  Não sei se você tem a consciência de que todas essas coisas que me disse eram verdades. Não sei se enxergou isso um dia. Não sei se viu todas as constelações de estrelas brilhantes dentro de mim, se sabe como sou uma pessoa incrível. Mas cheguei à conclusão que pouco importa o que você sabe. O mais importante, meu amor, é que EU sei de tudo o que sou.
  


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Submersão

00:19 Kamila Siqueira 0 Comments

23/08/2016


Quando eu era criança, não podia entrar em piscinas fundas se não estivesse usando uma bóia em cada braço. Nunca aprendi a nadar. Na primeira vez em que vi o mar, apenas meus pés o conheceram de perto e suas águas só puderam subir até minhas canelas. Mais tarde, aprendi a mergulhar em um oceano diferente. Um mar interno. Metafórico.

Meu coração nunca foi raso. E, embora eu cultivasse um certo medo das ondas traiçoeiras do oceano real, eu nunca temi mergulhar em mim mesma. Eu construí um castelo submerso nessa alma líquida, construí uma cidade inteira, minha própria Atlântida. Mas, até hoje, sinto que não conheci todos os pedacinhos dessa imensidão profunda. 

O problema é que de vez em quando, desses pedacinhos escuros e desconhecidos, surgem sereias. E elas cantam para mim. E o canto me embala, me eleva, me envolve e me puxa para mar adentro, para o fundo, para os cantos escuros e misteriosos. E a sensação é tão deliciosa, meu coração se aquece, sinto o calor de outra pele em minha pele e não quero nunca mais voltar à superfície. E é aí que eu me afogo.

Esqueço-me das recomendações para não entrar em águas profundas, esqueço-me de que não sei nadar e me afogo. Me afundo. Me engasgo com a água salgada, que queima minhas narinas, minha garganta, meus pulmões, que lutam para respirar. A água salgada que engulo se torna amarga, inunda meu corpo e envenena minha alma. Eu morro. A casca continua viva e sou obrigada a arrastá-la por todo o canto, enquanto tento ressuscitar o coração. Um, dois, três. Um, dois, três. Até que, mais cedo ou mais tarde, ele volta a bater.

Tantas vezes isso me aconteceu, tantas vezes me deixei levar pelo canto doce e fui engolida pelas ondas traiçoeiras do oceano. Até que prometi a mim mesma manter distância da água. Mantive os pés firmes no chão o quanto pude, mas aí... aí... Bom, aí você me apareceu. E me chamou pra nadar com você. E eu fui, de colete salva-vidas, achando que assim estaria livre de qualquer mal. Brinquei na água contigo. Tentei permanecer onde meus pés alcançavam a areia. Mas de repente, me deu uma vontade louca e irresponsável de mergulhar contigo e eu não podia mergulhar de colete salva-vidas. Livrei-me do colete. Livrei-me das amarras. Livrei-me dos medos, das inseguranças, dos traumas, das recomendações alheias. Livrei-me até da própria roupa. E a cada dia eu mergulho mais fundo e tenho a sensação estranha de que consigo respirar embaixo d'água. De que não vou me afogar. De que está tudo bem.

Às vezes piso em falso, em algum buraco escondido pela areia submersa. Nesses momentos, algo atinge minha consciência e me faz lembrar o quanto estou me arriscando. E me faz querer te pedir. Te implorar. Por favor, não seja mais uma sereia que canta para me afundar. Por favor, não roube todo o oxigênio que tenho até me assistir morrer. Por favor, por favor, por favor, não me faça morrer de novo. Por favor.


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Abóbada Celeste

10:30 Kamila Siqueira 0 Comments

    06/06/2016




    O problema não é o filme que a gente viu no cinema e você se esqueceu, nem aquelas outras coisas que sua memória seletiva apagou e que eu gostaria que se lembrasse. Dessas coisas a gente até ri. O problema é que você não admira as estrelas do céu.

    Quando a noite era escura e tudo ao nosso redor fazia silêncio, eu tinha o gosto da sua boca em minha saliva e suas mãos já moravam em minha pele. O teu sorriso sempre hipnotiza meus olhos, você sabe. Mas desta vez, por um instante de segundos, meu olhar escapou do seu feitiço e perdeu-se. Aterrissou no céu.

    Um milhão de estrelas me olharam de volta e eu quase perdi o fôlego ao perceber que ali era tão escuro que eu conseguia ver estrelas onde nunca havia visto antes. Só que você não as viu. Você estava perdido na curva do meu pescoço, entretido com meu perfume. E eu quis te dizer: "Ei, olha isso! Olha quantas constelações a gente consegue ver daqui, olha como esse céu sorri pra gente, olha!" Eu quis te apontar a constelação de Escorpião, quis te contar porquê ela só aparece no céu durante os equinócios, quis te falar toda aquela mitologia de Órion que eu não sei se você conhece. Mas eu não o fiz. Eu não te contei nada e não te apontei estrela nenhuma. Eu engoli toda aquela poesia que meus olhos encontraram e me voltei de novo a você. Porque eu sei que você conseguiria ver as constelações, sei que conseguiria enxergar as estrelas, mas jamais as veria como eu vejo. Eu sei que você enxerga o mundo inteiro, mas não vê a delicadeza dele que eu vejo. A minha maior vontade naquele momento era de me deitar nos teus braços e olhar para o céu. E só. Mas eu sei que a sua vontade não tinha nada a ver com o que estava acima de nós, eu sei que seus olhos queriam se perder em mim, e não no céu. E isso normalmente não seria um problema, seria até bonito. Mas é que você não enxerga as estrelas em mim.

    Eu tenho um milhão de pequenos vaga-lumes que moram dentro de mim e fazem minha alma brilhar. Eu tenho um milhão de coisas boas dentro de mim. Eu tenho um milhão de virtudes, um milhão de histórias curiosas, um milhão de conversas interessantes, um milhão de amor. Mas você não enxerga nada disso. Eu ainda consigo ouvir sua voz me chamando de mil elogios. Ainda consigo sentir seus lábios macios vindo de encontro aos meus e sua barba namorando minha pele. Mas tudo o que seus lábios, sua barba, seus olhos e o seu sorriso querem é mergulhar profundamente em meu corpo. E nada mais.

    E isso, sim, é um problema.

 

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Digressão

01:43 Kamila Siqueira 0 Comments

30/04/2016




    Eu nunca tive medo do escuro porque sabia que nele poderia me esconder. Em outros tempos, ele foi bastante útil para esconder as feridas abertas que eu não gostaria de mostrar e as conversas que eu não gostaria de ter. Se eu não vejo nada, então nada me vê.
    Hoje já não me escondo mais, mas ainda me sinto mais segura sem as luzes. É no silêncio do escuro que as palavras vêm me visitar. Às duas da manhã, a gente acha que todo mundo está dormindo. Mas se nós não estamos, é bastante possível que outros também não estejam, certo? Todas as luzes no prédio da frente estão apagadas. Eu me pergunto quantos olhos estão abertos neste momento e quantos corações estão acesos como o meu. Quantos estão buscando preencher este buraco que a gente só sente às duas da manhã? Quantos estão sentindo o desespero da percepção de que a vida não tem um caminho certo? No escuro, a gente sente tudo com mais intensidade. As pessoas choram no escuro. Sentem medo. Fazem amor. As pessoas sonham no escuro, de olhos abertos, observando o teto de seus quartos. No escuro, as nossas almas se libertam. Temos as ideias mais geniais, os sonhos mais profundos, os planos mais ousados. Somos mais sinceros no escuro. Admitimos nossos desejos e conversamos sobre nossas dores. Na última vez em que eu disse eu te amo, estava envolta pela escuridão. Na última vez em que rezei aos céus, minha companhia era o silêncio da madrugada. Na última vez em que ousei sonhar, eu não enxergava nada além da minha própria esperança. E aquela foi a última vez.
    Para onde vão os nossos sonhos quando acendemos as luzes e apagamos os nossos corações?




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A patrulha da fraude

10:51 Kamila Siqueira 0 Comments

     


30/03/2016
      Toc Toc.
     Eu encaro a porta com o cenho franzido e abro. Dois homens me encaram, um loiro, um moreno. Usam ternos. Perguntam se sou a fulana de tal e eu afirmo com a cabeça. Os dois entram sem convite. Quando passam por mim, consigo ler rapidamente um crachá: Patrulha da fraude.
     Sentam-se. Sento-me. O moreno abre uma pasta cheia de papéis e começa.
     - Nós sabemos de tudo. Estamos te observando desde o início então não tente nos enganar também. Você é uma impostora. Nós temos provas de que você não faz a menor ideia do que está fazendo com a sua vida e tudo o que conseguiu até hoje não vale nada porque você é uma farsa.
     Meu coração acelera. Fui descoberta.
     - Eu não sei do que estão falando.
     O loiro também fala.
     - Exatamente. Você não sabe de nada. - Ele estala os dedos - Vamos por partes. Você pretende arrumar um emprego de verdade um dia ou vai continuar fingindo que é uma profissional com esses empreguinhos que arranja desde que saiu da faculdade?
     - Eu... eu tenho um emprego - a afirmação soa quase como uma pergunta.
     - Em nossos arquivos consta que você nunca declarou imposto de renda.
     - Porque nunca recebi a quantia anual que me obrigaria a declarar.
     O moreno tira os óculos e massageia as têmporas.
     - Você acha que isso é salário de um adulto?
     Eu dou de ombros.
     - É a média que recebi em todos os empregos que já tive.
     - O que seu pai acha disso?
     Eu não respondo. O loiro respira fundo.
     - Nós sabemos também sobre seus sonhos profissionais - ele ri - se é que podemos chamar isso de profissão. Você realmente acha que um dia será uma escritora de verdade?
     - Eu sou uma escritora de verdade - afirmo.
     O moreno também ri.
     - Quantos livros você já publicou?
     Eu me encolho.
     - Eu nunca disse que era uma autora publicada...
     Eles anotam algo nos papéis, um ri e o outro debocha:
     - Desde os 17 anos com essa história e ainda não cresceu...
    - Ok, vamos mudar de assunto. - Suspiro aliviada. - Sua vida amorosa. Você está ciente de que suas amigas estão começando a se casar enquanto você não tem nem namorado?
     Eu rolo os olhos.
     - Eu estou bem com isso, obrigada.
     - Você tem ideia da quantidade de pessoas que estudaram com você no colégio e já tiveram filhos? E eles estão ótimos. Filhos dão um novo sentido à vida, fazem você se tornar um adulto de verdade, criar responsabilidades. Coisas que você não tem.
     Encolho-me de novo. Eles analisam documentos e fotos na pasta.
     - Nós sabemos que você sai com alguns caras de vez em quando. Até diz para os amigos que às vezes gostaria de namorar alguém. Mas somente nós sabemos que na verdade você possui a maturidade emocional de uma adolescente e não sabe construir relacionamentos adultos. Você não sabe fazê-los durar.
     O outro consulta alguns papéis.
     - Até quando você pretende usar os traumas dos dois ex-namorados agressores para legitimar sua solteirice?
     Trinco os dentes.
     - Eu não tenho trauma nenhum e não uso desculpa nenhuma.
     - Será que não? Nem para si mesma?
     Fecho os punhos.
     - Ok, ok, não queremos deixá-la desconfortável. Não há nada de errado em viver sozinha. Ser independente. Diga-nos, por que você ainda não mora sozinha mesmo?
     Fecho a cara.
     - Não ganho o suficiente para me sustentar.
     Eles sorriem.
     - Ah, claro. O emprego de novo. Você sabe que já está saindo da fase dos "vinte e poucos anos" e entrando nos "vinte e tantos", não é? Não acha que já está na hora de conseguir se sustentar como uma adulta?
     Não respondo. O moreno me encara, olho no olho, e eu sustento o olhar.
     - Você só finge ser adulta. Mas na verdade não consegue ser. Você é uma farsa. Tem idade mais do que o suficiente para ser uma pessoa de verdade, mas não consegue. Você é incapaz. Olha à sua volta, todos os seus amigos do facebook já moram sozinhos, dirigem seus carros, têm bons empregos, ganham bem, viajam, aproveitam a vida, namoram, casam-se. Olha pra você. O que você conseguiu até hoje? Como você tem coragem de andar por aí fingindo que é alguém de verdade? Você não é nada.
     Ele termina de falar e continuamos nos encarando, ambos com as mandíbulas apertadas. Minha respiração é pesada. O loiro intervém, entregando-me alguns papéis e uma caneta.
     - Acredito que isso é o bastante por hoje. Por favor, assine nos locais indicados e iremos embora.
     Dou uma lida rápida nos papéis sem entender muitas coisas, mas assino rápido para me livrar logo dos dois.
     - Essa é a sua assinatura? - Eles perguntam, rindo do meu nome escrito por extenso. - Parece piada.
     Encaminham-se para a porta. Antes de desaparecerem, o moreno torna a olhar-me com firmeza e diz:
     - Pode ter certeza que isso não vai ficar em segredo. Vamos contar para todo mundo sobre seus fingimentos. Você está perdida, garota.
     Eles vão embora e eu permaneço parada na porta. Por uma, duas, três horas. Não consigo me encarar no espelho. Eu estou perdida.
    Eu estou perdida.



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Caixas ineptas

16:59 Kamila Siqueira 0 Comments

01/03/2016




Eu enxergo as pessoas como seres que carregam caixas. É como se cada um de nós, ao nascer, ganhasse uma caixinha simples, vazia por dentro. Sete bilhões de caixinhas iguaizinhas. Ela não é um fardo porque nós não temos obrigação nenhuma quanto à caixa, não há nada que supostamente devemos fazer com ela. Entretanto, eis a beleza da coisa: não temos obrigações, mas possuímos a liberdade de fazer o que quisermos com ela.

Algumas pessoas enfeitam a caixa. Deixam-na o mais bonita que conseguem e sentem-se felizes ao admirá-la. Isso é bonito. Outros preferem não alterar sua aparência física e gostam da caixa em seu estado natural. Isso também é bonito.

A diferença existe quando abre-se a caixa.

A gente pode colocar o que quiser lá dentro. Coisas boas, coisas ruins, coisas que nos fazem rir, coisas que despertam sentimentos bons em quem abrir a caixa, coisas que ajudam outras pessoas. Coisas que destroem, coisas que apodrecem, coisas que inspiram, coisas que afagam. A caixa não tem fundo. Imagino até mesmo que quanto mais se adiciona à ela, mais espaço se cria para novos conteúdos. A caixa é mágica e ao mesmo tempo, completamente comum.

Por onde ando, procuro por caixas a serem abertas. Respeito quando não há aberturas, algumas pessoas preferem manter seus cadeados fechados por questões de (in)segurança. A gente precisa compreendê-las e respeitá-las. Outras, passam o dia a adornar sua caixa, polindo-a até que ofusque tudo ao seu redor e a carregam consigo por onde andam. Mostram-na com orgulho porque é um objeto bonito. Mas, ao abrir-se, a caixa não tem nada além de quatro pequenas paredes vazias. Brancas. Insípidas. Essas caixinhas me entristecem. Veja bem, todos nós temos a liberdade de colocar o que quisermos dentro da caixa. Por que tantas caixas ainda estão vazias?

De vez em quando, encontro uma cheia. Ainda mais raramente, uma que transborda. Caixas que transbordam me fascinam. E isso me faz pensar em minha própria. Eu já destranquei meus cadeados, mas penso que ainda há muito pouco aqui para ser uma caixa admirável. Tenho algumas frases escritas, uma montanha de palavras lidas, mãos que ofereço de graça e céus que não me esqueço de admirar. Às vezes ainda tenho um pouquinho de vergonha dela e sei que preciso melhorá-la. Por dentro. Ainda há tanto espaço a ser preenchido! Conto com a paciência e compreensão de quem abre a caixa: ela está em constante reforma interior e juro que ainda irá evoluir muito. O importante é não deixar que ela se torne um deserto estéril, uma caverna oca.

Tente não andar por aí como uma caixa oca.




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Demasia

15:43 Kamila Siqueira 1 Comments

28/01/2016



    "É que você é... você é oito ou oitenta, entende?"
    Não. 
    Entendo o que quer dizer, mas a verdade é que eu sou um oitenta completo, o tempo inteiro, sem espaço para oito nenhum.
    Eu sou um exagero.
    O tempo todo.
    
    Eu não guardo espaços vazios em meu coração, eu o preencho de alegrias e angústias até que não reste espaço nenhum e meus sentimentos transbordem para fora de mim. Eu passo a madrugada me despedaçando, morro a cada noite e desperto no outro dia, completamente cheia de vida. Eu escrevo todas as minhas sensações sufocantes e transformo pessoas em protagonistas de textos, crônicas, trechos, parágrafos, escrevo livros inteiros sobre pessoas pela metade. Eu entrego meu sangue e meu oxigênio quando julgo que é necessário, eu não tenho um termômetro muito preciso e não pretendo ter. Eu não vou me segurar, não vou controlar meus impulsos, não vou evitar demonstrar tudo o que sinto porque outros julgam que sinto demais.  

    Eu corro uma maratona inteira para mostrar que aprendi a andar, eu salto de um penhasco só para provar a mim mesma que não tenho mais medo, eu  mergulho fundo no meio do oceano sem saber nadar. A cautela não me cabe mais. Nunca me coube ter cautela, nunca me fez bem manter um pé atrás. Eu quero andar com os dois pés juntos porque acredito que só assim conseguirei chegar onde desejo. E meus desejos também não cabem no campo da modéstia. Eu quero ser grande, quero ir mais alto do que todos sugerem que eu vá, porque não tenho medo de altura. Eu entendo todos os medos e preocupações, mas eu não caibo dentro de tanta prudência. Eu preciso tentar e preciso dar o melhor de mim em tudo, preciso saber que fiz absolutamente tudo o que podia. Eu aposto todas as minhas fichas naquilo que todos duvidam, carrego uma confiança colossal de que tudo irá dar certo, de um jeito ou de outro. E se der errado, se eu cair, se tudo desmoronar, sei que pelo menos a queda será livre. Livre de culpa.

    E se tudo isso for intenso demais para você, se eu for grande demais para todas as suas precauções, eu vou embora. Porque eu não vou, jamais, em hipótese alguma, diminuir tudo o que sou para me encaixar em pedaços pequenos de vida.

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Malácia

11:21 Kamila Siqueira 0 Comments

    06/01/2016


    As ondas do mar me enchem os ouvidos de um som reconfortante e eu encho os pulmões de um suspiro profundo. Mais cedo, sentei-me diante do oceano e chorei. Não havia nada me causando dor, mas é que sempre que as águas salgadas beijam meus pés e eu ouço o sussurro das ondas, sinto que o mar pede para encontrar o mar que existe dentro de mim e eu deixo que ele escorra para fora dos meus olhos. Minha água salgada encontra a água salgada da Terra e eu sinto que está tudo bem, que faço parte deste mundo, que somos feitos da mesma matéria.

    Agora embalo a mim mesma deitada em uma rede, encarando o telhado de telhas alaranjadas. Alguém toca Wish You Were Here no violão e isso encosta no meu interior e remexe meus sentimentos. Penso naquele amor que deixei há alguns dias, sem um beijo de despedida e sem deixá-lo realmente. Penso no quanto estou perdidamente... perdidamente... perdida. O pensamento não me causa angústia, estou perdida de um jeito tão familiar que sinto-me segura, de alguma forma. Ouço o murmuro das ondas do mar e do vento, sinto o ar fresco encher meus pulmões. Tenho consciência de que nem tudo será calmaria e de que as ondas do mar também destroem e afogam. Mas respiro e o que sinto é uma calma plena. Como se eu flutuasse. Sinto que, de alguma forma, as coisas vão se encaixar, como sempre se encaixam e como nunca se encaixaram antes. Sinto o perigo iminente que o futuro pode me oferecer, mas ainda assim, por algum motivo, sinto que posso confiar na água salgada que beijou meus pés e no amor que não beijou meus lábios de despedida.

    A música dedilhada chega ao refrão e eu penso nas pessoas. Nas que estão ali, nas que estão longe, na família e nos amigos. Sorrio. Pergunto-me se elas conseguem sentir todo esse amor que sinto dentro do peito, um amor que me faz querer agradecer por tudo o que acontece, apesar de todo o resto. Sou completamente preenchida de um sentimento pacífico, que envolve e abraça meu coração, que me faz querer dizer obrigada o tempo inteiro. Por tudo o que tenho e por tudo o que sou. Por todos os abraços, por todas as risadas e por todo amor. Por todas as pessoas que passam pela minha vida, até aquelas com quem não troco muitas palavras. Por todas as gentilezas e as lições. Por todos os segundos que correram até que eu chegasse neste momento em que estou. É desse sentimento estranho que tiro a certeza de que tudo irá se encaixar. Desse sentimento.

    Gratidão. 

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