Precisamos falar sobre a violência contra a mulher. E agora é a minha vez.
04/01/2015
Eu nunca escrevi sobre as coisas que você fez.
Falei sobre isso algumas vezes, mas sempre entre amigos, em tom de piada, como forma de amenizar tudo dentro de mim. Agora, depois de ler tantas coisas sobre este tema, depois de presenciar certas coisas, depois de me identificar e de sentir as palavras subindo pela garganta, querendo sair, escrevo.
A Lei Maria da Penha entende como formas de violência, entre outras:
I - a violência física;
II- a violência psicológica;
III- a violência sexual;
IV- a violência patrimonial;
V- a violência moral.
Você parecia perfeito quando apareceu. Bonito, sorridente, sociável. Todo mundo gostava de você. E, olha que sorte, foi logo de mim que você gostou. Perfeito. Ótimo. Incrível. Até a primeira briga.
"Eu te odeio, sua vadia filha da puta."
Achei que você era meio nervoso, sabe? Os primeiros xingamentos eu ignorei, deixei passar. Mais tarde a gente conversaria e tudo ficaria bem. E ficava mesmo, por alguns dias. Mas você era o médico e o monstro e eu não tinha como prever quando o monstro apareceria.
Não me lembro exatamente quando você começou a implicar com meus amigos também. Pedia para eu não sair com eles, para ficar com você naquela noite, para ficar com você naquele fim de semana, para passar o mês de férias com você, para não sair com eles nunca mais. Eu saía. Você dizia que eu iria sofrer as consequências. Eu parava.
E quando começou a implicar com minha família? Porque às sextas-feiras eu gostava de jantar em casa porque era dia de pizza. Mas você queria que eu ficasse o tempo todo com você e inventou um dia da pizza com a sua família também, do qual eu era obrigada a participar. Todas às sextas-feiras. E se eu faltasse? Ah, eu não queria nem imaginar.
"Você é uma escrota de coração frio".
Eu guardei as mensagens com ameaças e xingamentos. Quando mencionei que eu poderia ir à polícia, você respondeu bem calmamente: "O que você acha que eles vão fazer? Eu nunca encostei um dedo em você".
"II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação"
Quando você me xingava dos piores nomes do mundo, era violência contra a mulher. Quando você dizia que tinha nojo de mim, era violência contra a mulher. Quando você dizia que meu corpo era feio, era violência contra a mulher. Quando você dizia que eu devia mudar o cabelo e fazer algo para mudar meu corpo, era violência contra a mulher. Quando você dizia que aquelas roupas não me caíam bem, que aqueles sapatos eram horríveis e que você não gostava daquele batom, era violência. Quando você me mostrava fotos de mulheres bonitas e dizia que eu deveria ser como elas, era violência. Quando você dizia que tinha vergonha de andar comigo em público porque meus braços e minhas pernas eram muito magros, era violência contra a mulher.
"Você tem estrias demais."
Quando você enviou mensagens a todos os meus amigos dizendo que tinha nojo deles também, foi violência. Quando você me fez recusar um trabalho porque dizia que eu não era boa naquilo e que você faria melhor (mas recusou o trabalho), foi violência. Quando você tentou espalhar fofocas sobre minha intimidade e vida sexual pela faculdade inteira, foi violência. Foi agressão.
Eu terminei com você e você tentou se matar. Três dias na UTI. Eu voltei. Ainda tenho um pouco de vergonha de admitir que voltei, ainda ouço as pessoas dizendo que eu merecia ser agredida porque voltei. Ainda luto contra o pensamento de que a culpa era minha. Ainda me arrependo de ter voltado.
Porque, obviamente, tudo piorou. Não tinha como melhorar, você não achava que estava errado. Dizia que tinha "uma doença". E que eu deveria "ser mais compreensiva". Mas eu não fui.
"Sua filha da puta de merda."
Quando você disse que eu teria que escolher entre você e os meus "amigos nojentos", eu os escolhi. Quando você não aceitou o fato de que eu queria passar o natal com minha família em outra cidade, eu fiz minhas malas e viajei. Eu terminei com você por telefone porque tinha medo do que poderia acontecer pessoalmente.
E você fez da minha vida uma montanha russa entre o inferno e o purgatório.
"Minha vontade é de encher sua cara de porrada." "Você vai sofrer as consequências da sua escolha". "Você vai ter uma surpresinha". "Eu vou destruir a sua vida".
Você inventou mentiras e histórias absurdas para me afastar das pessoas. Funcionou com uma ou duas.
"V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria."
Mas ainda bem que tenho família e amigos incríveis que cuidaram de mim. Não sei ao certo quanto tempo tive que ir e voltar do trabalho com meu pai, por medo de você aparecer, ou quantas noites você fez plantão na porta do meu prédio. Foram meses. Ninguém sabe o tamanho do meu medo.
Meses depois, você me enviou uma mensagem perguntando como andava a minha vida. Assim, como se nada tivesse acontecido. Eu ignorei. De tempos em tempos, uma nova mensagem e eu sempre ignorava. Há pouco mais de um mês, recebi um e-mail seu, perguntando casualmente como eu estava e dizendo para mandar notícias. Obviamente, eu ignorei.
Mas, se este texto chegar a você, eu te digo aqui como estou:
Minha vida começou depois que te expulsei do meu mundo. Como quando você acorda de um pesadelo horrível e percebe que está em sua cama, em sua casa, com seus pais dormindo no quarto ao lado. Seguro. Você me fez sentir menos mulher, menos humana. Um lixo. Mas eu tive a ajuda de muitas pessoas para descobrir o valor que sempre tive e que você tentou tirar de mim. Descobri o quanto sou bonita, o quanto meu corpo é perfeito, o quanto amo meu cabelo, minhas roupas e minhas maquiagens. Continuo com os mesmos amigos que você odiava e até fiz novos amigos. Saio com eles pelo menos uma vez por semana. Ah, agora eu bebo um pouquinho de vez em quando porque ninguém mais me proíbe disso. Às sextas-feiras tem pizza lá em casa com a família e aos sábados assistimos a seriados de super-herói que meu pai gosta. Conheci outros homens, que me trataram muito bem, que enxergaram o meu valor, que me fizeram sorrir e que - pasme - gostaram até da minha aparência física. Me apaixonei e pelo menos um deles se apaixonou por mim também (sim, é possível!). Escrevi um livro, comecei outro, troquei de emprego, cortei o cabelo. Eu tô feliz como nunca fui na minha vida inteira e sou grata por absolutamente tudo o que tenho. Tô cercada de coisas boas e de pessoas maravilhosas e tenho um amor enorme transbordando de dentro de mim. Se você me visse na rua, não me reconheceria porque nunca viu esse sorriso aqui.
É isso.
Lei Maria da Penha: http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/pj-lei-maria-da-penha/formas-de-violencia
Para denúncias de violência contra a mulher, ligue 180.