É que eu sinto muito
17:46 Kamila Siqueira 0 Comments
12/09/2020
3:40 da manhã e eu penso que esse deve ser um recorde da insônia.
Insônia:
substantivo feminino
Falta de sono.
Talvez eu não devesse chamar de insônia, afinal. O sono existe, ele está lá. Ele está aqui. Ele está na ardência dos olhos durante todo o dia, na dor de cabeça, na resposta para aquela pergunta que de tempos em tempos ele me faz: e esses olhos vermelhos?
Mas eu deixei de dormir há algum tempo, há alguns meses. Quando voltei a sonhar. Eu deixei de dormir porque os sonhos fervilham em minha cabeça e eu não consigo parar, eu não consigo descansar, eu não consigo deixar de ouvir aquelas vozes que sussurram ilusões. E eu as respondo. Eu respondo que sei que elas estão mentindo, mas que estão mentindo tão docemente que eu quase acredito. Eu quase acredito em todos aqueles sinais do universo. Eu quase acredito que aquele lugar onde eu sempre quis chegar possui um caminho de tijolos amarelos.
Mas por fim, eu não me deixo acreditar, é claro. Eu não posso. Preciso matar os sonhos antes que eles me matem por completo, antes que eles tirem meus pés do chão e me façam cair. Porque a queda dessa vez seria insustentável, entende? Eu não sei se você entende realmente. Como eu poderia me explicar?
É que eu sinto muito.
Eu sinto tanto, a todo momento, sobre todas essas coisas do futuro, sobre todas aquelas do passado e sobre esse presente pausado, inexistente, insuportável. Eu não sei por quanto tempo mais vou conseguir viver nesse presente inabitável. Eu olho o calendário todos os dias e conto os meses nos dedos da mão, conto os meses que faltam e os meses que já se passaram desde que começamos a viver os dias em que ninguém viveu. Eu conto e faço planos para o futuro. Mil planos de tudo o que vou fazer quando eu voltar, mil planos de tudo o que vai acontecer, mil planos que eu com certeza alcançaria, se ao menos eu... Se eu... Se eu não fosse quem sou.
Eu tentei me explicar para vocês. Mas minhas palavras são sempre batidas no liquidificador e dependendo da velocidade da mistura, não é possível mesmo distingui-las no final. Eu não os culpo por não me entenderem. É que são tantas as coisas que sinto que nem sei como colocá-las para fora de forma que elas não se embaralhem. Eu sinto muitas coisas que não digo e digo tantas coisas que não escutam.
Todos os sonhos se transformam em pesadelos ao fim da noite. É assim que tem que ser. É assim que preciso encarar, para que eu nunca me esqueça da realidade da alma humana. Para que eu nunca me esqueça de que não há mão para segurar (e não pelas mãos serem ruins, mas por esse não ser o papel delas). Para que eu nunca me esqueça de que no fim, sempre seremos apenas um e que por isso não devo tentar voar alto.
Ninguém vai me segurar para que eu não caia no chão.
Cigarra
16:23 Kamila Siqueira 0 Comments
Esse texto não é para que você leia, meu amigo. Não é para que você ouça.
Esse texto é para que eu fale. É só para que eu fale.
Há quantos anos nos conhecemos? Você se lembra do dia em que nos conhecemos? Já faz tempo, mas eu me lembro que gostei de você desde o primeiro momento. Talvez porque eu sempre gosto das pessoas no primeiro momento (e me esforço para que não seja apenas no primeiro momento). Eu gosto de pessoas, não é? Eu costumava sempre gostar das pessoas.
Eu acho que você também gostou de mim já naquele dia. Quero dizer, você gosta de mim, não gosta? Eu costumava acreditar que você gostava.
Eu me pergunto se nós já éramos assim naquela época ou se fomos nos formando e transformando ao longo do tempo. Eu não me lembro de ter esse sentimento agridoce naquele tempo. Talvez ele tenha surgido conforme eu mergulhava nessas águas profundas e movediças que existem dentro de mim, das quais já não consigo mais sair. Sei que não sou uma boa companhia na maior parte do tempo. Sei que escolho todas as palavras erradas. Sei que causo ferimentos aos montes ao meu redor. Mas eu não sei como não ferir.
Te dediquei palavras sangrentas porque me senti ferida por você, o que não é uma justificativa plausível, eu sei. A gente podia ser tão parecido. Gostamos de muitas coisas em comum, sentimos tudo à flor da pele, entramos os dois naquela jornada de autoconhecimento e enfrentamento de traumas, ao mesmo tempo. Nós dois escrevemos. Escrevemos sobre nossos machucados mais profundos, sobre nossos passados, sobre o mundo e sobre o futuro. Nós dois sangramos por coisas parecidas em várias ocasiões. Por que a gente é tão diferente então?
Talvez tenha sido pelas coisas que você viveu enquanto crescia e pelas coisas que eu vivi enquanto envelhecia. Pelas coisas distorcidas que nós dois aprendemos com quem não sabia ensinar. Eu tento não te culpar pelas suas decisões erradas e tento não me culpar pelos meus atos impensados, mas às vezes não consigo. Tenho uma incrível dificuldade em aceitar nossas diferenças e, sobretudo, suas indiferenças. Quando você não se importa. Quando você rola os olhos. Quando você se ofende por eu dizer que você não se importa. Quando você olha para dentro tão profundamente que parece não conseguir olhar para fora nunca mais em sua vida. E eu, que vivo no outro extremo, que me machuco por não conseguir olhar para dentro de mim mesma, não consigo acompanhar sua lógica e seu ritmo. Somos extremos de uma mesma sinfonia. Eu, autodestrutiva. Você, autocentrado.
No dia do seu aniversário, quis te comprar um presente. Fiz uma lista de possibilidades e nenhuma delas se encaixava no meu atual emaranhado de problemas financeiros. Pensei em comprar mesmo assim. E aí lembrei daqueles momentos das sessões de terapia sobre o autosacrifício supérfluo. Dei dois passos para trás e desisti das compras. Senti culpa. Senti culpa por dois dias seguidos. Senti culpa como em tantas outras vezes, como quando você me presenteou em outras ocasiões. Você não iria sentir culpa, iria? Você não iria sentir culpa.
Eu escrevo para que eu não fale demais, mais do que já falei. Para que a gente não se machuque mais. Eu escrevo porque não saberia dizer o que sinto com as palavras certas, porque não saberia dizer que toda a minha revolta e toda a minha tristeza diante da sua neutralidade também é... Amor. Será que você entenderia? Será que entenderia que tudo isso é porque sinto amor, acima de todas as coisas?
Eu não acho que eu saberia dizer.
Eu não acho que você saberia entender.
A ressaca do mar
16:59 Kamila Siqueira 0 Comments
Hoje a tristeza foi tão grande que não consegui me desgrudar da minha própria pele para escrever outras histórias.
A tela em branco me cobra, vazia. Mas me permiti dedicar o dia de hoje apenas ao espaço cheio aqui de dentro. Hoje o vazio foi tão grande que não houve espaço para mais nada.
Curioso como uma pequena fagulha pode ocasionar um incêndio gigantesco. A faísca me fez enxergar de novo, me fez rever onde eu estava antes dessa pausa, dessa grande pausa. E o lugar onde eu estava era doloroso e hoje eu me lembrei por quê.
Eu estava indo embora.
Talvez eu estivesse indo até tarde demais. Já faz tanto tempo que não sinto que pertenço a esses lugares, a esses papéis, a essa vivência. Mas me agarrei com todas as forças porque sabia que se eu fosse embora dali, teria que ir embora de todas as coisas também. Eu estava indo embora, mas sem querer ir de verdade. Eu estava escapando, escorregando, caindo sem querer.
Mas aí veio a pausa. E com a pausa, era impossível perceber que eu estava indo embora, porque ninguém podia mais ir a lugar nenhum mesmo. Até eu me esqueci de que estava indo. Fiquei. Fiquei por um tempo, fiquei como ficava antigamente, fiquei tranquilamente distraída, achei que fiquei inteira. Mas hoje a fagulha se acendeu e eu percebi de novo que estava partida ao meio, percebi como eu tinha escorregado, como estava distante da proximidade de sempre. Não existia mais nada daquilo para mim. A pausa camuflou o fato de que me mandaram embora, mas eu me lembrei. E agora não consigo me esquecer de novo.
Quando tudo isso chegar ao fim, será o meu fim também? Será que a pausa renovou minhas chances ou voltaremos exatamente ao ponto em que paramos, onde eu estava escorregando pelo precipício? Eu não quero ir embora, mas não sei mais como ficar. Não sei se posso ficar, se me permitem ficar. Se eu suporto ficar... Não sei se há espaço para mim ou se terei que me espremer e me encolher como um peixe fora d'água que ainda tentar respirar em uma pequena poça. Não sei se terei ar, se terei fala, se terei importância, se lembrarão de mim.
Não sei se terei amor.
Cais/Caos
23:01 Kamila Siqueira 0 Comments
- Não queria ter voltado aqui - disse ela, quando se encontrou novamente sentada em frente à janela aberta para o mar.
- Eu sei.
- Eu estou tentando não voltar para esse estado, você sabe. Estou tentando de verdade, de verdade mesmo.
- Eu sei - a outra voz respondeu, encarando a paisagem à frente. Como nas outras vezes, até o mar estava silencioso. - Mas eles não sabem disso. Não se esqueça de que eles não sabem.
O olhar dela estava cheio, mas não derramava. Ela não conseguia derramar mais nada, apenas sentia seu coração doendo absurdamente. O silêncio fora de si reinava, as areias intactas.
- E se eu tentar explicar a eles?
Ele deu de ombros
- É como te disse na última vez. Eles não são capazes de enxergar como você enxerga e não é culpa deles. Nem sua. Apenas não é possível.
- De nenhuma forma?
- De nenhuma forma.
Mais silêncio.
- Às vezes eu ainda penso muito em ir até lá - ela confessou, apontando com a cabeça para o oceano. - Sei que machucaria alguns, mas às vezes eu sinto que meus pés já estão lá, molhados. Às vezes eu sinto que na verdade não machucaria ninguém...
- Talvez não.
O pensamento dela vagou.
- Eles vão embora, não vão? Mais cedo ou mais tarde, eles todos vão embora.
- Vão.
- Eu não acredito que poderei ser feliz quando eles forem.
O silêncio, sempre úmido e pegajoso. O vento não soprava, o ar estava quente, o oceano lá fora era quieto e impiedoso, em sua imensidão.
Quando a voz dele saiu, era grave e firme.
- E você era feliz até agora?
Lácero
11:46 Kamila Siqueira 0 Comments
Era uma fábrica de última tecnologia, onde todos os robôs eram construídos de forma completamente automática. Um lote após o outro, os homenzinhos de aço e ferro saíam com todos os componentes que precisavam para realizar qualquer tarefa no mundo. É claro, como todo o processo era automatizado, não havia ninguém para decidir quantos robôs deveriam ser feitos, para onde cada um deveria ir ou qual função deveria cumprir. Mas, inteligentes como eram, cada um deles logo econtrava um ofício e o cumpria com maestria. Ninguém ficava para trás.
Exceto...
Bom, houve um dia em que algo aconteceu. Não houve alarde, ninguém chegou a perceber (já que máquinas e robôs não percebem coisa alguma), mas um robôzinho saiu da última esteira da fábrica com uma pecinha a menos. Nem mesmo ele chegou a perceber, pois o buraquinho onde a peça deveria estar ficava bem dentro dele. Por fora, todos os parafusos e engrenagens estavam completos. Ele saiu da fábrica em um dia ensolarado, como todos os outros robôs. Andou pelas ruas em que todos andavam. Encontrou um prédio em construção onde vários homenzinhos de aço e ferro marretavam e soldavam, lixavam e cortavam.
Imediatamente, passou a marretar também. Mas entortou uma viga sem querer. Outro robô rapidamente consertou o estrago e empurrou o robôzinho para longe. Ele não entendeu nada (não fora programado para entender), então apenas escolheu outra ferramenta - um martelo - e passou a trabalhar novamente. Após dois minutos, martelou a própria mão de aço, entortando levemente um dos dedos. Três robôs o empurraram até a saída.
Mais à frente, o homenzinho capenga encontrou outros androides sentados em grandes fileiras de computadores, digitando freneticamente. Sentou-se em um que estava vazio e passou a digitar. Três horas depois, seu computador gritou um alarme e o céu sumiu em fumaça. O robôzinho foi logo expulso novamente.
Vagando pelas ruas, aproximava-se de cada grupo de semelhantes que encontrava. Ninguém dava atenção a seus bips. Grupos iam e vinham, deixando-o sozinho, ou o olhavam das antenas às rodas dos pés e afastavam-se. Ele não entendia, todas as suas peças visíveis eram exatamente iguais às dos outros de sua espécie, mas sentia que algo estava errado. Sentia que algo estava faltando. Procurava por todo o seu corpo de lata, mas aparentemente tudo estava lá. Não entendia de onde vinha aquela sensação de vazio, mas se fosse capaz de sangrar, o buraco da pecinha dentro de si teria jorrado em sangue. Depois de colecionar idas e vindas, cansou-se de ser empurrado para todos os lados vazios.
Deitou-se em um banco ao ar livre. As nuvens escuras bradaram e a água derramou sem piedade. O robôzinho, feito de aço e ferro, não sabia que não podia se molhar. Ninguém sabia. E ninguém se importava, não foram criados para se importar. Ele ficou deitado durante uma eternidade, até perceber que não conseguia mais se mover, enferrujado que estava. As articulações não obedeciam mais. As outras máquinas passavam e não o enxergavam, ocupadas demais com suas importantes funções. Ele não morreu, não podia morrer, afinal, era um robô. Ficou ali, sentindo a chuva encharcar seu corpo supérfluo imortal, a água gelada pingando e escorrendo.
Pingando e escorrendo.
Pingando e escorrendo.
O gelo chegou finalmente ao buraquinho vazio dentro dele. Doeu. A água congelante era como o vento que bate em um machucado na pele cortada, que arde. Ardeu. E continuou a escorrer. Ardeu. Escorreu, ardeu, escorreu, ardeu... Para todo o sempre.
Quem?
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