Lácero
06/03/2020
Era uma fábrica de última tecnologia, onde todos os robôs eram construídos de forma completamente automática. Um lote após o outro, os homenzinhos de aço e ferro saíam com todos os componentes que precisavam para realizar qualquer tarefa no mundo. É claro, como todo o processo era automatizado, não havia ninguém para decidir quantos robôs deveriam ser feitos, para onde cada um deveria ir ou qual função deveria cumprir. Mas, inteligentes como eram, cada um deles logo econtrava um ofício e o cumpria com maestria. Ninguém ficava para trás.
Exceto...
Bom, houve um dia em que algo aconteceu. Não houve alarde, ninguém chegou a perceber (já que máquinas e robôs não percebem coisa alguma), mas um robôzinho saiu da última esteira da fábrica com uma pecinha a menos. Nem mesmo ele chegou a perceber, pois o buraquinho onde a peça deveria estar ficava bem dentro dele. Por fora, todos os parafusos e engrenagens estavam completos. Ele saiu da fábrica em um dia ensolarado, como todos os outros robôs. Andou pelas ruas em que todos andavam. Encontrou um prédio em construção onde vários homenzinhos de aço e ferro marretavam e soldavam, lixavam e cortavam.
Imediatamente, passou a marretar também. Mas entortou uma viga sem querer. Outro robô rapidamente consertou o estrago e empurrou o robôzinho para longe. Ele não entendeu nada (não fora programado para entender), então apenas escolheu outra ferramenta - um martelo - e passou a trabalhar novamente. Após dois minutos, martelou a própria mão de aço, entortando levemente um dos dedos. Três robôs o empurraram até a saída.
Mais à frente, o homenzinho capenga encontrou outros androides sentados em grandes fileiras de computadores, digitando freneticamente. Sentou-se em um que estava vazio e passou a digitar. Três horas depois, seu computador gritou um alarme e o céu sumiu em fumaça. O robôzinho foi logo expulso novamente.
Vagando pelas ruas, aproximava-se de cada grupo de semelhantes que encontrava. Ninguém dava atenção a seus bips. Grupos iam e vinham, deixando-o sozinho, ou o olhavam das antenas às rodas dos pés e afastavam-se. Ele não entendia, todas as suas peças visíveis eram exatamente iguais às dos outros de sua espécie, mas sentia que algo estava errado. Sentia que algo estava faltando. Procurava por todo o seu corpo de lata, mas aparentemente tudo estava lá. Não entendia de onde vinha aquela sensação de vazio, mas se fosse capaz de sangrar, o buraco da pecinha dentro de si teria jorrado em sangue. Depois de colecionar idas e vindas, cansou-se de ser empurrado para todos os lados vazios.
Deitou-se em um banco ao ar livre. As nuvens escuras bradaram e a água derramou sem piedade. O robôzinho, feito de aço e ferro, não sabia que não podia se molhar. Ninguém sabia. E ninguém se importava, não foram criados para se importar. Ele ficou deitado durante uma eternidade, até perceber que não conseguia mais se mover, enferrujado que estava. As articulações não obedeciam mais. As outras máquinas passavam e não o enxergavam, ocupadas demais com suas importantes funções. Ele não morreu, não podia morrer, afinal, era um robô. Ficou ali, sentindo a chuva encharcar seu corpo supérfluo imortal, a água gelada pingando e escorrendo.
Pingando e escorrendo.
Pingando e escorrendo.
O gelo chegou finalmente ao buraquinho vazio dentro dele. Doeu. A água congelante era como o vento que bate em um machucado na pele cortada, que arde. Ardeu. E continuou a escorrer. Ardeu. Escorreu, ardeu, escorreu, ardeu... Para todo o sempre.