Cigarra
09/06/2020
Esse texto não é para que você leia, meu amigo. Não é para que você ouça.
Esse texto é para que eu fale. É só para que eu fale.
Há quantos anos nos conhecemos? Você se lembra do dia em que nos conhecemos? Já faz tempo, mas eu me lembro que gostei de você desde o primeiro momento. Talvez porque eu sempre gosto das pessoas no primeiro momento (e me esforço para que não seja apenas no primeiro momento). Eu gosto de pessoas, não é? Eu costumava sempre gostar das pessoas.
Eu acho que você também gostou de mim já naquele dia. Quero dizer, você gosta de mim, não gosta? Eu costumava acreditar que você gostava.
Eu me pergunto se nós já éramos assim naquela época ou se fomos nos formando e transformando ao longo do tempo. Eu não me lembro de ter esse sentimento agridoce naquele tempo. Talvez ele tenha surgido conforme eu mergulhava nessas águas profundas e movediças que existem dentro de mim, das quais já não consigo mais sair. Sei que não sou uma boa companhia na maior parte do tempo. Sei que escolho todas as palavras erradas. Sei que causo ferimentos aos montes ao meu redor. Mas eu não sei como não ferir.
Te dediquei palavras sangrentas porque me senti ferida por você, o que não é uma justificativa plausível, eu sei. A gente podia ser tão parecido. Gostamos de muitas coisas em comum, sentimos tudo à flor da pele, entramos os dois naquela jornada de autoconhecimento e enfrentamento de traumas, ao mesmo tempo. Nós dois escrevemos. Escrevemos sobre nossos machucados mais profundos, sobre nossos passados, sobre o mundo e sobre o futuro. Nós dois sangramos por coisas parecidas em várias ocasiões. Por que a gente é tão diferente então?
Talvez tenha sido pelas coisas que você viveu enquanto crescia e pelas coisas que eu vivi enquanto envelhecia. Pelas coisas distorcidas que nós dois aprendemos com quem não sabia ensinar. Eu tento não te culpar pelas suas decisões erradas e tento não me culpar pelos meus atos impensados, mas às vezes não consigo. Tenho uma incrível dificuldade em aceitar nossas diferenças e, sobretudo, suas indiferenças. Quando você não se importa. Quando você rola os olhos. Quando você se ofende por eu dizer que você não se importa. Quando você olha para dentro tão profundamente que parece não conseguir olhar para fora nunca mais em sua vida. E eu, que vivo no outro extremo, que me machuco por não conseguir olhar para dentro de mim mesma, não consigo acompanhar sua lógica e seu ritmo. Somos extremos de uma mesma sinfonia. Eu, autodestrutiva. Você, autocentrado.
No dia do seu aniversário, quis te comprar um presente. Fiz uma lista de possibilidades e nenhuma delas se encaixava no meu atual emaranhado de problemas financeiros. Pensei em comprar mesmo assim. E aí lembrei daqueles momentos das sessões de terapia sobre o autosacrifício supérfluo. Dei dois passos para trás e desisti das compras. Senti culpa. Senti culpa por dois dias seguidos. Senti culpa como em tantas outras vezes, como quando você me presenteou em outras ocasiões. Você não iria sentir culpa, iria? Você não iria sentir culpa.
Eu escrevo para que eu não fale demais, mais do que já falei. Para que a gente não se machuque mais. Eu escrevo porque não saberia dizer o que sinto com as palavras certas, porque não saberia dizer que toda a minha revolta e toda a minha tristeza diante da sua neutralidade também é... Amor. Será que você entenderia? Será que entenderia que tudo isso é porque sinto amor, acima de todas as coisas?
Eu não acho que eu saberia dizer.
Eu não acho que você saberia entender.