Nem rei, nem valete
28/12/2020
Os velhos hábitos voltaram.
Aquele sentimento antigo de angústia e solidão, aquela amargura que envolve a alma e afoga o coração. Aquela sensação tão familiar.
Quando foi que me deixei convencer de que eu não era mais um Curinga?
Aquele que não é oito, nem nove, nem rei, nem valete. Aquele diferente de todas as cartas do baralho. Que todos enxergam como um bobo da corte e que poderia ser retirado do monte, sem que ninguém sentisse falta. Quando foi que me esqueci disso?
Durante os dias que não foram vividos, mergulhei nas palavras novamente. Nas palavras escritas, nas palavras lidas, em todas as palavras, e foi assim que me lembrei. Mergulhei de novo em tudo o que costumava mergulhar e acho que acabei mergulhando de novo também nas águas movediças. Ops. Foi sem querer, eu juro.
Foi sem querer, mas me afoguei de vez. Continuo vivendo os dias que não foram vividos, enquanto todos os outros já voltaram a viver. Parece que voltei a viver naquele canto. Ninguém enxerga o que eu enxergo, ninguém entende minhas palavras. É como se eu falasse outra língua. Eu tento expressar o que sinto, tento dizer, tento me abrir. Mas eles rolam os olhos. Suspiram com impaciência e eu me fecho de novo. Como nunca me fechei antes, talvez.
Não acho que eu tenha salvação. Eles nunca vão enxergar o que eu enxergo, nunca vão entender o que sinto e como essa angústia é dolorida e como ela me mata pouco a pouco, a cada dia. Eles nunca vão entender. Eu sou um curinga, o bobo da corte, a carta que sobra, aquela que não tem par. Que não tem grupos. Eles são reis, valetes, As, oitos, noves. Eles são eles. Eu não faço parte deles. E eu não faço parte dele.
No fim, quando todo o baralho se esparrama pela mesa, eu não consigo mais ignorar o fato: um dia, eu sei, um dia eu mesma terei que me dar a cartada final.